A minha história com Eusébio

‘Não se apercebia totalmente do valor que tinha’

josé augusto

colega no benfica e na selecção

o eusébio veio para portugal com 17 anos [em 1960]. mas só começou a jogar no benfica com 18, quando chegou de moçambique a autorização da mãe que era exigida naquele tempo. e nós na equipa do benfica percebemos, logo nos primeiros treinos, que ele teria de ser titularíssimo. quando chegou era muito modesto. falava pouco e tratava-nos a todos por ‘senhor’ e então eu disse-lhe: ‘olha eusébio, aqui não há senhores, há colegas. nós somos todos iguais’. ele era humilde e essa grande humildade permitiu-lhe potenciar ainda mais as suas capacidades físicas e técnicas. não se apercebia totalmente do valor que tinha. e continuou a ser a mesma pessoa até morrer. e isso atraía todos, mesmo os adversários, que o respeitavam e viam nele um símbolo.

‘ia sempre cumprimentar-me aos balneários’

jorge nuno pinto da costa

presidente do fc porto

sempre nos demos bem, mas a grande convivência que tive com ele foi no princípio do meu mandato (talvez 1982). o fcp foi jogar com o anadia, um amigável. o toni estava a organizar o jogo para ajudar o clube e tinha já o eusébio e o simões que iam estar do lado do anadia, e o nosso treinador, o pedroto, pediu-me para levarmos uma equipa. no fim, fomos cear em casa de um amigo que tinha lá umas caves e o serão durou pela madrugada fora. recordo-me de que o eusébio estava-se a queixar ao pedroto da situação um bocado complicada em que estava financeiramente. o pedroto disse-lhe: “está descansado que nós vamos arranjar alguma coisa no fcp”. falei depois com o fernando martins, presidente do benfica e muito meu amigo, e disse-lhe: “olhe, o eusébio está em dificuldade. ele é um símbolo do benfica e é uma vergonha para si se ele amanhã aparece a trabalhar no porto. mas se você não arranjar, eu arranjo”. ele agradeceu-me e garantiu-me que ia resolver o problema – o que felizmente fez. o benfica soube ser reconhecido por tudo o que o eusébio fez pelo clube e, até aos últimos dias, foi sempre prestigiado e bem tratado. desde aí, mantivemos sempre um excelente relacionamento. mesmo nos momentos mais quentes com o benfica, ele ia sempre cumprimentar-me aos balneários.

desde 1966, no mundial de londres, que é o ídolo de todos os portugueses. foi um jogador fenomenal, como houve muitos e ainda há. mas o que não há é um ser humano comparável ao eusébio: mesmo no auge, manteve sempre uma simplicidade e humildade, eu diria, quase anormais. era, de facto, um grande ser humano.

‘estava sempre a pregar-me partidas’

antónio caldeirinha

motorista de eusébio

não consigo falar do eusébio sem me comover. era uma pessoa muito humilde. nasceu humilde e morreu humilde.

conhecia-o há uns 37 ou 38 anos. cheguei de moçambique em 1969 e três ou quatro anos depois fui trabalhar para uma firma que tinha a representação dos automóveis saab em portugal, do senhor dantas de barros, que abriu um stand em benfica com o eusébio. dantas de barros convidou-me para trabalhar com ele e foi assim que eu conheci o eusébio. sempre que ele precisava de tratar disto ou daquilo ligava-me e pedia-me. depois trabalhei numa firma de vendas e estive uns meses fora, mas quando voltei, há coisa de um ano e meio, o eusébio ligou-me. ele tinha tido um acidente com o carro e não queria voltar a conduzir, por isso comecei a ser motorista dele. estava com ele todos os dias.

lembro-me de uma vez que fui à figueira da foz com o eusébio e com o joão malheiro e estava a chover imenso quando voltámos. eles estavam sempre a mandar vir comigo, que não era assim e que não era assado, e eu já vinha com a cabeça cheia de tal modo que entrei na auto-estrada e me esqueci de tirar o ticket. quando cheguei às portagens de sacavém, foi um problema danado. tive de pagar a portagem como se tivesse vindo do norte. na altura foram uns cinco mil e tal escudos, que era o dinheiro todo que eu tinha na carteira. no dia seguinte, o eusébio e o malheiro apareceram-me com um envelope, a dizer. “olha, como és bom rapaz a brisa devolveu-te o dinheiro todo da portagem”.

ele era muito brincalhão. estava sempre a pregar-me partidas. às vezes, estava eu a descansar, e estava ele com um grupo e ligava-me às tantas a dizer que o carro estava a avariado. quando eu chegava lá, não era nada. estavam todos a comer num restaurante e queriam só a minha companhia.

‘muitas vezes apostava almoços connosco’

joão vieira pinto

antigo futebolista e responsável da fpf

antes dos treinos da selecção, muitas vezes o eusébio colocava-nos desafios técnicos. eram exercícios como acertar com a bola na barra, fazer passes longos de modo a que a bola passasse entre as pernas de um colega posicionado a 30 metros de distância ou marcar golo com a bola parada para lá da linha de fundo. ele muitas vezes apostava almoços connosco e também participava nos desafios. sempre que ganhava, era certo que nos ia gozar.

‘era afinado e dançava muito bem’

rui veloso

cantor

quando o conheci, há uns 20 e muitos anos, era o menino que estava a conhecer o seu ídolo de sempre. depois encontrámo-nos muitas vezes. uma delas foi no cantinho da paz, um restaurante na ajuda, que era quase o escritório dele. ele estava lá a jantar. era fim de noite e estávamos entre amigos. alguém trouxe uma viola e ele pediu-me para cantar ‘irmã áfrica’, um tema do meu quatro álbum. eu aceitei o desafio. a dada altura, dou por mim com o eusébio à minha frente a dançar e a cantar este tema. esta imagem está gravada: eu estava ali a tocar com o meu ídolo de pequeno. ele era afinado a cantar e dançava muito bem.

‘o maior da noite foi o rei eusébio’

gigi reino

dono do restaurante gigi

nos meus tempos de jogador de rugby do benfica, nos anos 67/68, no campo das tábuas ou tabuletas, no campo grande, já era um orgulho para um puto como eu ser tratado pelo velho massagista maravilhas e fazer banhos de imersão num tanque acerca do qual o maravilhas comentava: “ainda ontem esteve aqui o eusébio a relaxar os músculos”. só faltava nós pedirmos para nos deixar a água dele… já depois da minha curta carreira desportista tive sempre encontros ocasionais com o grande eusébio, rei da noite – no porão da nau, no diana bar, no ribadouro, etc. já na minha vida adulta encontrei-o várias vezes na tia matilde do sr. emílio, o pai e padrinho de todos os atletas benfiquistas. aquando da minha curta passagem pelos negócios da noite, no ad lib, passo de puto admirador a amigo bem relacionado. já me começara a impressionar pela sua natural grandeza dos reis e pela sua humildade natural. ele entrava no ad lib e ia para a sua mesa onde bebia ou whisky, ou adegas velhas ou conhaques. no final, pedia a conta e eu dizia sempre: “oh eusébio, eu tomei banhos no teu banho de imersão. enquanto for vivo não pagas nada aqui”. ele retribuía sempre com um obrigado. uns tempos depois, estava a jantar com o meu amigo diogo saraiva e sousa no barracuda, em vilamoura – o diogo recebia encomendas de portugueses espalhados pelo mundo que, por altura do natal, ofereciam todos os anos uma caixa de moët ao grande eusébio – e noutra mesa estava o andré jordan a jantar com o presidente moçambicano, joaquim chissano, e a sua comitiva. uma hora depois entrou o eusébio, aparentando um ar ‘perdido’, dirigiu-se à ‘mesa de estado’ e com a sua informalidade acabou com a ‘formatura’. abraços e emoções e tudo à vontade. como já tinha jantado, passou pela nossa mesa e eu desafiei-o: “senta-te aqui, que ali vais levar uma ‘seca oficial’ de quatro horas e eu vou dizer ao andré jordan que estávamos à tua espera para ir à festa do t-club”. “oh gigi, mas eu não tenho convite para a festa…”, ao que respondi: “grande eusébio, tu és a única pessoa que conheço que não precisa de ir à caixa do correio para levantar o convite para as festas”. lá fomos os três para o t-club, onde eusébio fez um enorme sucesso à porta. o maior dessa noite foi mesmo o rei eusébio. partiu um homem bom…

‘eram conversas picadas fantásticas’

antónio ribeiro

vocalista dos uhf

terei conhecido o eusébio no verão de 1999, quando apresentei a canção ‘eu sou benfica’ no estádio da luz. nessa ocasião tive oportunidade de o apresentar ao meu pai, para quem o eusébio era também um ídolo. a partir daí encontrei-me com ele muitas vezes. o joão malheiro organizava umas tertúlias/almoçaradas e eu também ia. destes almoços na costa da caparica recordo os momentos de picardia entre eusébio e hilário. eram umas conversas picadas fantásticas. o hilário dizia: “tu vinhas para cá e pensavas que me paravas com as tuas fintas, mas eu chegava ali e tirava-te a bola”. eram almoços memoráveis.

‘ouvi-lo falar dos jogos era saboroso’

antónio bagão félix

antigo dirigente do benfica

conheci o eusébio depois de ele ser jogador. sou seis anos mais novo. fui vice-presidente da assembleia-geral do benfica há 22 anos, se não me engano.

eusébio era uma pessoa autêntica, genuína, pura, que sentia grande paixão pelo futebol.

ouvia as leituras e os comentários de jogo dele como se fosse um aluno. ele era o professor.

ouvi-lo falar dos jogos, de como jogámos, como devíamos ter jogado, quem devia ter entrado… era saboroso.

a última vez que estive com ele julgo que terá sido na tia matilde. estava lá com uns colegas da faculdade e ele levantou-se e veio cumprimentar-me. aí já tinha estado no hospital. terá sido a última vez porque começou a sair menos e eu comecei a ir menos ao estádio da luz.

‘ficávamos sempre no mesmo quarto’

hilário conceição

ex-companheiro no sporting de lourenço marques

toda a gente sabe que para mim o eusébio é como se fosse um irmão. crescemos juntos, a mãe dele era amiga da minha, jogámos descalços no bairro… entretanto, eu vim para portugal e, dois anos depois, quis trazê-lo também.

a nossa rivalidade terminava no campo. nos estágios da selecção, ficámos sempre no mesmo quarto enquanto corremos o mundo. já era da praxe: quando se marcavam os quartos, havia sempre o quarto do hilário e do eusébio. quando jogávamos contra as outras equipas, costumávamos falar em dialecto, ninguém percebia o que dizíamos.

andávamos sempre juntos. acabávamos um jogo e eu ia para casa dele beber um whisky. ele era muito alegre. no carnaval e na passagem de ano, as famílias de um e do outro iam festejar para um clube ou discoteca.

‘foi o único jogador a ter uma estátua em vida’

toni

treinador e colega no benfica

o eusébio ajudou a transformar o benfica num clube conhecido mundialmente. lembro-me quando em setembro de 1968 o benfica foi jogar a reiquiavique, na islândia, e fizemos escala em glasgow. eusébio também foi connosco mas partiu para paris, onde recebeu a primeira bota de ouro da uefa. e nós, que tínhamos partido discretamente, quando chegámos fomos recebidos em festa. e não era só o eusébio a dar autógrafos. o eusébio teve essa capacidade: de a certa altura se tornar o sustentáculo do clube. e teve a felicidade de ver com os seus olhos o reconhecimento do seu estatuto: com a taça eusébio e quando se tornou o único jogador a ter uma estátua ainda em vida. era um farol para muitos de nós e vai fazer-nos muita falta.

‘era um homem sem maldade, mas muito supersticioso’

ricardo cardoso

juiz-desembargador

a primeira vez que vi o eusébio jogar foi na minha estreia no estádio da luz, em 1965, tinha sete anos, pela mão do meu tio-avô carlos duarte. conheci-o pessoalmente depois em 1970, em luanda, quando o benfica foi jogar ao estádio dos coqueiros: acompanhei então o meu pai e o fernando peyroteo (que pertenciam ao conselho provincial de educação física de angola), na recepção. ele tinha então um ar muito ‘ié-ié’: usava barba e cabelo comprido.

nos anos seguintes, encontrávamo-nos nos jogos na luz e nos jantares que se seguiam, no restaurante tia matilde. recordo-me da alegria dele quando o benfica eliminou o marselha [nas meias-finais da taça dos campeões europeus, a 18/4/1990] com aquele golo do vata. quando chegámos ao hotel, revimos na tv o golo e percebemos a discussão à volta daquilo: o eusébio ria-se, ria-se, e dizia: “grande golo, grande golo!”. era um homem sem maldade, de grande simplicidade, mas muito supersticioso. depois, antes da final com o ac milan, em viena, foi à campa do bella gutman rezar e pedir-lhe que retirasse a maldição que lançara [de que o benfica não voltaria a ser campeão europeu]. não valeu de nada: perdemos.

‘deu-me um beijo na mão com um ar de felicidade total’

fátima lopes

estilista

a última vez que estive com o eusébio foi no último jogo da selecção, na luz, o portugal-suécia. vi o jogo sentada ao lado dele. ele vibrava. passou o tempo todo a comentar o jogo. não ficava calado. era quase como se fosse ele o treinador. estava muito enervado. notava-se que era algo que mexia com ele. quando portugal marcou golo, eu virei-me para ele instintivamente e agarrei-lhe a mão. deu-me um beijo na mão com grande carinho e com um ar de felicidade total, com um sorriso aberto. durante o jogo não se notou nada que estivesse debilitado. mas não se levantou para celebrar. vou ficar com essa imagem para sempre.

há outra história que guardo, a da primeira vez que o vi. quando, em 2005 aceitei fazer os fatos para a selecção para o mundial de 2006, disseram-me que também tinha de fazer fatos para o eusébio, porque ele fazia parte da comitiva. mas disseram-me que ele não ligava nenhuma à roupa, que da última vez nem tinha levado para casa os fatos e o melhor era eu não contar que ele quisesse tirar medidas. mas eu tinha de tirar medidas. e mandei-lhe uma mensagem, a explicar quem era e a dizer que ia fazer os fatos da selecção. ele ligou nesse mesmo segundo, muito entusiasmado. convidou-me para ir a casa dele. foi único a quem tirei medidas em casa. e fui muito bem recebida por ele e pela flora. ele gostou imenso dos fatos e fez muita questão de ficar com eles.

‘quando vinha almoçar, não tinha horários’

emílio andrade

dono da adega da tia matilde

o eusébio veio pela primeira vez à adega da tia matilde com um dirigente do benfica, quando iam a caminho do algarve, numa altura em que a situação dele não estava regularizada e ele ficou uns tempos em lagos.

depois disso, veio cá várias vezes com colegas do benfica, porque outros jogadores como o costa pereira e o coluna vinham cá muitas vezes. mas só se tornou num cliente mais assíduo depois de deixar de jogar futebol. vinha cá quase todas as semanas, três a quatro vezes por semana à hora de almoço.

foi-se gerando uma amizade entre o pessoal do restaurante, a minha família e a família do eusébio, porque ele vinha cá muito com a mulher e as filhas. tornou-se um amigo. era uma pessoa muito conversadora, gostava de falar e de conviver. se ele foi um bom jogador de futebol, foi também um bom ser humano. era fácil fazer amizade com ele. não era pessoa de falar sobre política. falava sobre outros temas da vida, mas era o futebol que o entusiasmava. quando falava de futebol tinha conversa para a tarde inteira. quando vinha almoçar, não tinha horários. chegava sempre depois das 14h30 ou das 15h.

conhecia bem a nossa ementa e vinha cá nos dias em que tínhamos os pratos de que ele gostava. gostava muito da canja de galinha daqui e também de caldeirada de cherne. e quando não havia nada que lhe agradasse, passava pela vitrina dos peixes e escolhia um.

na última semana de vida, só não almoçou aqui no dia 1 porque estávamos fechados. queixava-se muito de uma dor insuportável nas costelas, em baixo do lado esquerdo. nos últimos dias comia muito mal.

‘a comida em casa dele tinha sempre um sabor a áfrica’

joão malheiro

comentador e antigo director de comunicação do benfica

conheço o eusébio desde miúdo. quando o benfica ia fazer estágios ao norte, eu ia vê-lo. isto nos anos 60. a primeira vez que o vi devia ter uns oito ou nove anos. foi na póvoa do varzim, num estágio quando o benfica ia jogar com o varzim. ver o eusébio foi como para um católico ver cristo. fiquei nervosíssimo. mas ele foi muito simpático. eu estava era longe de imaginar que íamos ficar tão amigos como ficámos.

nos anos 90, viajámos juntos num voo para um jogo do benfica em milão. e falámos. fomos ficando amigos em meados dos anos 90. mas o contacto só começou a ser diário quando me mudei para lisboa, em 1997, quando vim para a tsf. entre 1997 e 2000 almocei todos os dias com o eusébio. depois, só não era todos os dias porque fiquei como director de comunicação do benfica e tinha de trabalhar – e os almoços com o eusébio eram sempre longos. mas durante anos almocei todos os dias com ele. o eusébio só almoçava em casa ao domingo. e mesmo aí, às vezes, eu ia ao domingo almoçar em casa dele comida feita pela flora, sempre com um sabor a áfrica, muito caril, comida de moçambique… havia sempre conversa. sobretudo sobre futebol.

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