Mas na arquitectura, no cinema, mesmo na pintura e na escultura, há uma vertente técnica ou tecnológica que na publicidade quase não existe. Na publicidade, a criatividade manifesta-se praticamente em estado puro.
Os publicitários têm, além disso, de superar um problema que nunca vi referido. Ao publicitarem um produto, precisam de convencer os consumidores de que aquele é o melhor produto do mundo, que não há nada igual. Mas passado um tempo, quando surge um novo produto que substitui aquele, cabe-lhes passar a ideia de que o novo produto é que é bom – e que o anterior não era afinal tão bom como se julgava. E daí a mais uns tempos, aquilo que ontem era fantástico já não é assim tão recomendável – e o novo produto é que vale mesmo a pena. E assim sucessivamente, num caminho sem fim.
Ora, é muito difícil fazer isto. E se as coisas não forem muito bem feitas, a páginas tantas ninguém acreditará na publicidade. Até porque alguns produtos tornam-se hoje obsoletos em poucos meses, como sucede no mundo das novas tecnologias.
A obrigação de ser constantemente criativo, de ter sempre propostas novas e luminosas, leva os publicitários a preocuparem-se tanto com a ‘ideia’ que perdem às vezes o sentido da ‘eficácia’. A trouvaille, a ideia nova, torna-se uma obsessão, um objectivo em si próprio – e impõe-se de tal forma que pode acabar por ‘abafar’ a marca que quer publicitar. No fim, adoramos a ideia de um anúncio – mas não sabemos bem que produto anunciava.
Exemplo disto é um célebre sketch em que um pastor, no meio da serra, conduzindo um rebanho de ovelhas, ouve a páginas tantas um toque, saca de um telemóvel, atende e diz: «Tou, xim…». E depois, virando-se para os animais: «É p’ra mim!…». A situação era tão cómica, que a fixávamos imediatamente. A ideia que lhe estava subjacente – o aproveitamento do contraste brutal entre um meio rural que se mantinha quase como na antiguidade, e a invasão desse mundo pelas novas tecnologias – funcionava na perfeição.
Ora, muita gente que ainda hoje recordará o anúncio não saberá se ele publicitava um operador (e que operador) ou uma marca de telemóveis (e que marca). A trouvaille era tão forte que se sobrepunha ao produto que publicitava.
Há muitos casos assim. Os prémios publicitários ajudaram a esta situação. Todos os profissionais querem ter ideias brilhantes, capazes de surpreender e ficar na retina – e a eficácia, a promoção do produto, acaba por passar para um plano secundário.
Na minha vida profissional tenho tido algum contacto com publicitários. E, passe o autoelogio, julgo que tenho algum jeito para essa área. Quando cheguei ao semanário Expresso, a chamada ‘assinatura’ do jornal era «O jornal dos que sabem ler». Este slogan fora criado no tempo da censura e significava que, na medida em que nem tudo podia escrever-se, o jornal dirigia-se aos que ‘sabiam’ ler, ou seja, aos que tinham capacidade para ler nas entrelinhas.
Acontece que, passados mais de dez anos sobre o 25 de Abril e o fim da censura, o slogan já não fazia qualquer sentido.
Quando, nas vésperas do nascimento do Público, o Expresso decidiu fazer uma campanha publicitária, propus que trocássemos de assinatura. E sugeri «Um jornal de confiança».
Contratámos então uma agência de publicidade para idealizar uma campanha que sustentasse esta afirmação. Quando veio a proposta, apanhei uma tremenda desilusão. Lembro-me de uma imagem em que se via um disco voador, com uma frase ao lado que era mais ou menos assim: «Se vir no Expresso a notícia de que aterrou na Terra um disco voador, deve acreditar, porque o Expresso é um jornal de confiança».
Achei aquilo um disparate total. Associar a imagem do jornal à fantasia dos discos voadores minava por completo a sua credibilidade. A publicidade, para atingir o alvo, tem de ser verosímil. Ora, tratando-se de uma ideia sem pés nem cabeça, virava-se contra nós: em vez de sermos ‘um jornal de confiança’ passávamos a ser um jornal capaz de trazer notícias estapafúrdias. Em suma, um jornal que não merecia confiança.
Este desconforto moeu-me durante vários dias. Queria recusar a proposta, mas para isso tinha de arranjar uma ideia melhor. Até que, numa viagem de comboio para o Porto, ocorreu-me subitamente a ideia salvadora: um grande cartaz com esta frase a toda a largura: «Acredite, se ler no Expresso». Depois, a reprodução da primeira página do jornal e, mais abaixo, em letra mais pequena: «Um jornal de confiança». As duas frases suportavam-se uma à outra: acredite se ler no Expresso, porque se trata de um jornal de confiança.
Fiquei radiante com a ‘descoberta’. Estava-se na idade da pedra dos telemóveis, eu tinha um admirável tijolo – e, aproveitando isso, logo ali, do comboio, liguei a Balsemão. Ele ouviu, ficou calado durante uns segundos, a assimilar a ideia, e finalmente perguntou: «E punha uma vírgula ou não entre o ‘acredite’ e o ‘se ler no Expresso’?». «Acho que punha uma vírgula», respondi.
Não sei se disse a Balsemão, na altura, que aquela frase continha uma ideia subliminar. Como já expliquei, isto passou-se nas vésperas da saída do Público. Ora, ao dizermos «Acredite, se ler no Expresso», estávamos implicitamente a dizer que não se devia confiar muito nas notícias publicadas nos outros jornais. O ‘se’ introduzia uma nota de desconfiança em relação aos nossos concorrentes (podendo, no limite, considerar-se publicidade negativa).
Pela reacção de Balsemão, percebi que tinha gostado da ideia. E o facto de ter perguntado pela vírgula, embora pareça estranho, não me surpreendeu: Balsemão é normalmente assim, meticuloso, parecendo às vezes picuinhas. Mas o que me interessava ali era o ter o seu Ok para andar para a frente.
Penso hoje que o «Acredite, se ler no Expresso» foi, de longe, a melhor frase publicitária que se fez sobre o jornal. Entrou rapidamente na cabeça das pessoas. Vários anos depois, ainda Cavaco Silva me dizia ironicamente: «Aquele jornal que diz ‘acredite se ler lá’…».
Era um exemplo de enorme eficácia. Havia uma simbiose perfeita entre a ideia e a mensagem que se queria passar. Mas conseguir isto é muito difícil, porque os publicitários anunciam produtos diversos, têm de ter constantemente novas ideias – e o importante para eles, como se disse, é encontrar uma história boa, mesmo que não case muito bem com o produto que se quer publicitar.
Quantos anúncios já não vimos em que a ideia publicitária não tem qualquer relação com a marca que promove? Lembro-me da campanha de lançamento do jornal i, em que o filme promocional começava com umas imagens de adultério ou de perseguição sexual… Não se percebia o que tinha aquilo a ver com um jornal. Tratava-se de uma colagem com cuspo de uma ideia que existia no ‘armazém de ideias’ do criativo e que ele adaptou (mal) à encomenda que lhe foi feita.
No extremo oposto, temos duas das frases publicitárias mais impactantes de sempre, ambas com mais de meio século: «Bosch é bom!» e «OMO lava mais branco». São frases simples, curtas, directas e que colocam a marca no centro da ideia. Por mais tempo que passe, sabemos a que marcas reportavam. Este é o segredo dos grandes anúncios.
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