Baralha-se e volta-se a dar. Muitas vezes de forma rebuscada, que as pessoas não percebem bem – deitando-se a imaginar o que lá não está.
António Damásio ocupou-se deste assunto, como se sabe, em O Erro de Descartes, que foi um grande sucesso de vendas. Aqui, o marketing teve um peso considerável, pois duvido que 50% das pessoas que compraram o livro o tenham lido. E, quanto a entendê-lo, a percentagem deve ainda baixar drasticamente.
A questão é sempre a mesma: no ser humano há uma parte de razão e uma parte de emoção. E o segredo de um bom equilíbrio é saber balanceá-las, doseá-las, de modo a que a emoção não abafe por completo a razão, atirando-nos para comportamentos irracionais. Mas também não é bom que a razão abafe por completo a emoção.
Aquilo a que chamamos ‘intuição’ – e que algumas pessoas desvalorizam – não é mais do que uma combinação, uma mistura, de razão e emoção.
Certas hipóteses a que não lográmos chegar pela razão são atingíveis pela intuição.
Os indivíduos que na sua actividade fazem apelo exclusivo à razão normalmente não vão muito longe – porque não conseguem dar saltos no pensamento, colocar hipóteses que seria importante experimentar. Vão step by step, não arriscam, cada passo que dão é limitado pelo passo anterior. No fundo, são burocratas de espírito.
Um cientista dizia-me um dia: «Sabe, no meu trabalho a imaginação tem um papel muito importante. Embora eu trabalhe na área científica, há hipóteses que coloco e que depois vou experimentar. Mas, se não as tivesse colocado, nunca chegaria lá só através da dedução. E assim descobri coisas que investigadores que estudaram isto antes de mim, com acesso às mesmas fontes, não tinham conseguido ver».
Claro que o contrário também não é bom. Um indivíduo que despreze por completo a razão, e vá loucamente atrás de intuições infundadas, arrisca-se a estampar-se constantemente.
Na paixão, os seres humanos ficam totalmente cativos da emoção, não conseguindo racionalizar as situações. Ficam possuídos pela cegueira e por isso fazem tantos disparates: destroem vidas – a sua e as de outros –, cometem loucuras que chegam a levar ao crime. As paixões são emoções à solta, descontroladas.
Já nas actividades artísticas – pintura, escultura, literatura – é impossível criar sem fazer apelo à emoção. As emoções têm aqui um contributo decisivo. A arte funciona aos saltos, às vezes grandes saltos no escuro – e só através da emoção (ou da intuição) se pode chegar lá.
Inversamente, a matemática vive exclusivamente da razão. Não há qualquer emoção nos cálculos matemáticos. 1+1=2, ponto final.
Há nas nossas sociedades uma actividade que tem como única função absorver as emoções: refiro-me ao futebol – o ‘desporto-rei’. E não falo como é óbvio dos atletas, cuja preparação é cada vez mais científica. Falo dos adeptos. Numa sociedade dominada pela racionalidade, o futebol é uma enorme válvula de escape.
A verdade é que, hoje em dia, nas suas vidas profissionais, a maioria das pessoas não tem espaço para as emoções. Os computadores, que são a grande (e praticamente única) ferramenta de trabalho de muita gente, fazem raciocínios puramente lógicos. As operações complexas que os computadores realizam são executadas através de combinações básicas.
Ora, nesta sociedade dominada pela lógica, pela frieza dos números, o ser humano encontra no futebol as emoções puras, irracionais, que mobilizam uma fé quase religiosa.
No futebol, as pessoas gritam, barafustam, exaltam-se. Para um adepto ferrenho, todos os penaltis marcados a favor da sua equipa são bem assinalados e os marcados a favor dos adversários são sempre «roubados».
No fim do jogo, a celebrar a vitória, estão lado a lado o pobre e o rico, o doutor e o analfabeto, o velho e o novo, o forte e o fraco – como ainda recentemente se viu nas celebrações do Benfica, no Marquês de Pombal, onde se misturava gente de todas as classes, idades e raças.
Perante o deus futebol, são todos iguais. E por isso o futebol é completamente democrático. A pertença a um clube aproxima o porteiro e o presidente da empresa. E as conversas de uns e de outros não se diferenciam muito: «Então, vamos ganhar hoje?». «Isto agora é sempre a bombar!». «É pena não jogar o fulano…». «Eles querem ver se entregam a taça aos outros antes de jogarem!». «Pois é… Uma roubalheira!».
Julgo que o futebol significa, nos tempos actuais, a simulação das ‘batalhas’ do passado. As guerras, os conflitos, estão no ADN humano. E os jogos de futebol são ‘dois exércitos’ de cada lado, batendo-se rijamente. Não há mortos nem feridos, mas há vencedores e vencidos. Nas bancadas estão os dois ‘povos’ em guerra, com claques ruidosas, gritos e batuques – incitando à vez cada um dos exércitos. E, em certos momentos, envolvendo-se eles próprios na contenda, acabando tudo à batatada.
Julgo que este é o grande segredo do futebol, que faz dele uma invenção diabólica: simular uma batalha. No fim, os adeptos da equipa triunfante, embora não tenham jogado, acham que ‘derrotaram’ os da equipa vencida – que abandonam cabisbaixos o campo de batalha. «Ganhámos!», diz o adepto típico, atirando ofensas ao ‘inimigo’ para o humilhar.
O futebol é um vazadouro de emoções a todos os níveis.
Vemos professores catedráticos a discutir futebol nas TV’s como crianças. É um pouco chocante. Mas o futebol é isso mesmo. Não é para tratar com punhos de renda. Não é para analisar com toda a lógica. Com isenção. Se o futebol não servir para dar largas às emoções, serve para quê? Para se ver friamente como um espectáculo, como se fosse ópera?
Aquilo é uma batalha. Se no futebol nos tornarmos racionais, certinhos, lá se vai um escape. O futebol é guerra, luta, emoção, democracia, celebração colectiva, cânticos de incitamento, onde todos nós podemos soltar livremente sentimentos primários que normalmente reprimimos numa sociedade dominada pelo politicamente correcto, pelo ‘parece mal’, pelo ‘vê lá não faças isso’.
Se no futebol quiserem acabar com as emoções, reprimir os sentimentos, onde poderemos dar largas sem freio a esse lado irracional e um tanto selvagem que nos habita? l
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