Verão sem areia

Os dias de calor começaram,  mas em muitas praias só se pode estender a toalha nas pedras. Na Costa da Caparica, ainda não há areia e na Adraga os trabalhos estão a decorrer. A realimentação é «só um paliativo», alerta especialista, defendendo uma intervenção mais abrangente.

Ricardo olha para o lugar onde deveria estar a areia, com ar desconsolado. Nas várias praias da Costa da Caparica, perto do paredão – ainda destruído – que normalmente dá acesso a S. João, o mar engoliu todo o areal. Bate nas pedras enormes dos molhes e recua, num vaivém ainda forte, não aconselhando a banhos. 

Mesmo assim, aquela que é uma das zonas balneares mais concorridas da zona da Grande Lisboa está cheia de banhistas e de surfistas. Aproveitaram a ponte de segunda-feira para experimentar os primeiros banhos. Mas só de Sol. 

Aqui e ali, há toalhas estendidas sobre as enormes rochas. Mesmo sobre as que têm a indicação «perigo de derrocada». À pergunta «onde vai estender a toalha?», uma rapariga responde imediatamente: «Sobre as rochas. É só para aproveitar um bocadinho de Sol». «O Hércules fez muitos estragos nesta zona», acrescenta o rapaz que a acompanha, de prancha de surf debaixo do braço. 

Não foi apenas na Costa da Caparica. O mar levou areia de praias por todo o país: Vila Praia de Âncora e Moledo (em Caminha), Barra (Ílhavo), Furadouro, Esmoriz e Cortegaça (Ovar), Ofir (Esposende), Pedrógão (Leiria), Areia Branca (Lourinhã), Praia Grande e  Adraga (Sintra) são das mais afectadas. E muitas continuam, em plena época balnear, sem areal para receber os veraneantes.

Ao SOL, fonte oficial do gabinete do secretário de Estado do Ambiente, Paulo Lemos, garantiu que Costa da Caparica, Barra, Furadouro, Moledo, Esmoriz e Cortegaça «estão já a ser objecto das necessárias acções de intervenção, ou, muito em breve, irão ser iniciadas obras » – mas não deu prazos (ver texto ao lado). 

Ricardo Hipólito, que vive «há muitos anos» em St.º António da Caparica, uma das mais fustigadas pelo temporal do Inverno, garante que «nunca» viu as praias assim: «Havia areia até meio dos pontões. Desapareceu tudo, até as escadas».

Comerciantes declaram época ‘perdida’

Num dos bares próximos, a funcionária conta que o «mar passou por baixo do estabelecimento e inundou toda a cozinha». E galgou para o outro lado, onde foram feitos investimentos de milhares de euros em estacionamentos.

Muitos restaurantes e cafés de praia mantêm-se fechados em meados de Junho. No Café do Mar, na praia do CDS, Luís Semedo – que, com Miguel Inácio, fundou o Centro Internacional de Surf – explica que ainda não fez contas aos prejuízos. «O mar levantou o chão todo e atingiu as máquinas, como o ar condicionado», conta. 
Mas as perdas serão bastante maiores: «Sentimos uma diferença enorme. Muitas pessoas que vinham aqui traziam as crianças para brincar na areia. Agora não podem». 
Miguel Inácio, que integra a Associação dos Apoios de Praia da Frente Urbana da Costa da Caparica, sublinha, por seu lado, que os prejuízos não se resumem aos dez concessionários para os quais «este Verão está perdido»: «Há os bares e restaurantes atrás, que também vivem do turismo. Estamos a falar da desertificação de toda uma zona», explica, lamentando que «o Estado, o senhorio dos bares, através da Costa Polis, ainda não tenha vindo fazer qualquer avaliação aos estragos».

Banhistas correm riscos

Os que se atrevem a frequentar  mesmo assim esta zona balnear correm alguns riscos, reclamando a atenção constante dos nadadores-salvadores que vigiam toda a Costa. «Quando a maré está mesmo vazia, há um pouco de areia junto às rochas e as pessoas estendem aí as toalhas. Estamos sempre a avisar que não devem fazê-lo. Não é seguro», conta um dos profissionais.

Também há quem apenas aproveite o passadiço para caminhar. Mas a determinada altura tem de regressar: uma vedação que indica o início de obras, junto ao parque de campismo de S. João, impede a passagem. O paredão está a ser reconstruído. «Mas eles também têm de pôr areia. Senão o mar vai por aí adentro», avisa uma das moradoras da Costa. É que, apesar de as autoridades terem anunciado o início das obras para Junho, os trabalhos de deposição de areia ainda não começaram.

A moradora tem razão, «embora a questão seja bastante complexa», como explica o especialista em dinâmica sedimentar João Alveirinho Dias. Sobretudo no caso da Costa da Caparica, em que, «há alguns anos, tudo era mar até à arriba da Costa, que é uma forma de erosão provocada pelo mar». Ou seja, na verdade, o mar apenas está a reclamar o território que já ocupava naturalmente. «Esses são os locais que, devido à imprevisibilidade da Natureza, não devem ser ocupados pelo homem» – como aconteceu na Caparica. Por isso, diz Alveirinho Dias, deveria fazer-se primeiro um estudo das zonas de maior vulnerabilidade, como esta, e proibir-se a construção, o que nunca foi feito em Portugal. 
Já este ano, o Ministério do Ambiente mandou demolir mais de 800 construções no Litoral devido, precisamente, à falta de segurança. 

Não foi a primeira vez que aconteceu. «Houve um secretário de Estado, Carlos Pimenta, que começou a fazer esse trabalho, mas saiu. Se tivesse continuado a sua política, hoje não teríamos um décimo dos problemas que temos com a orla costeira», acredita Alveirinho Dias. 

Mas vale a pena pôr areia? A resposta é afirmativa: «Toda a areia que se coloque é bem-vinda. Mas as quantidades repostas nas praias portuguesas são sempre medidas paliativas. Para que surtissem o efeito desejado, seria necessário colocar a quantidade de areia equivalente àquela que chegaria às praias sem a intervenção humana», explica o especialista, sublinhando que, de dez em dez anos, temos invernos semelhantes ao último. 

Deveríamos pensarem ‘sectores costeiros’

Por outro lado, apenas «realimentar uma praia com areia é errado», defende o especialista:  «Pensa-se numa determinada praia quando se deveria pensar num sector ou trecho costeiro. A Natureza, que é muito inteligente, vai utilizar essa areia para alimentar todas as praias da zona». Seria suficiente, por exemplo, «colocar areia a Sul da foz do rio Douro» e «os processos naturais iriam espalhá-la por todo o sector costeiro». 

A Austrália é um exemplo de boas práticas na defesa da orla costeira, defende ainda Alveirinho Dias: «Os municípios e o governo decidiram que não queriam obras fixas para defender a costa, como esporões e paredões. À partida, parece que fica mais barato, mas não».

Na Golden Coast, conhecida mundialmente pela extensão do seu areal, «a realimentação é feita no início do trecho costeiro e, quando a areia chega ao fim, reciclam-na e voltam a colocá-la no início» – o que é mais eficaz para a valorização do turismo e do surf na zona.

29 praias de uso limitado

A praia da Adraga, em Sintra, é outra das grandes afectadas pelo temporal do Inverno e que está, esta época balnear, classificada como uma das 29 praias de uso limitado, seja devido ao perigo da queda de arribas seja por falta de areia. Só em Sintra há mais duas: a de S. Julião e a do Magoito.

Considerada recentemente pelo diário britânico Guardian a mais bela de Portugal, esta praia de arriba está já a ser realimentada e «a ficar mais composta», como explica Luísa Pimenta, uma das responsáveis pelo restaurante da praia.
Mas não o trecho costeiro, como aconselham os especialistas: é na própria praia que a realimentação está a decorrer, cobrindo as pedras de areia. «Camiões cheios de areia estiveram cá na semana passada e voltaram esta», conta Luísa, garantindo que nunca viu marés vivas como as deste Inverno. 

Grande parte da Adraga desapareceu. Mesmo assim, os banhistas não desistem e alguns espraiam-se ao Sol, enquanto outros observam a praia a partir da esplanada do restaurante. Grande parte das pedras já está coberta de areia e a Adraga recupera, aos poucos a sua beleza original. Luísa garante: «O mar vai acalmar e recuar. No final do mês a praia vai estar bela como todos a conhecemos».

sonia.balasteiro@sol.pt