Eu e o Palácio de Belém

Apesar de ser a residência oficial do Presidente da República desde a proclamação do regime republicano, em 1910, o Palácio de Belém foi, até fins dos anos 70, um dos mais desconhecidos do país. Quase nada se sabia sobre a sua história. 

Nos princípios dos anos 80 recebi um inesperado convite: o Presidente de então, Ramalho Eanes, que eu conhecia bastante mal, chamou-me a Belém e convidou-me a fazer a história do Palácio.

Aceitei imediatamente, o que não está nos meus hábitos. Peço sempre um tempo para pensar. Mas ali foi diferente, e expliquei ao Presidente porquê: primeiro, porque nasci em Belém (num prédio de dois andares que ainda existe, com duas palmeiras à frente, a meio da Calçada do Galvão); segundo, porque, como arquitecto (profissão que eu exercia na altura), com uma costela de historiador, tinha o maior interesse em fazer a história daquele Palácio com tanta história que eu conhecia desde criança.

Passados uns dias telefonou-me o Francisco Lyon de Castro, patrão das Publicações Europa-América, editora que iria produzir o livro. Perguntou-me quanto queria eu para o escrever. Fiz as contas ao tempo que me pareceu necessário – e àquele que teria de roubar à profissão – e respondi-lhe: 250 contos. Lyon de Castro, com a sua habitual frontalidade, respondeu: «Você pede 250 contos como podia pedir 100 ou 50…». Expliquei-lhe que não. Que o valor era mesmo aquele. E ele acabou por aceitar.

O trabalho de investigação foi especialmente difícil, porque praticamente não havia nada escrito sobre o tema. Até que alguém me deu um conselho inspirador: ir ao Arquivo Histórico do Ministério das Finanças – que ficava na Rua de Santa Marta, junto a um conhecido edifício da Divisão de Trânsito da PSP – onde estava tudo o que respeitava a despesas do Estado e da Coroa, no qual encontraria certamente muita informação relativa a obras no Palácio e, portanto, à sua evolução.

De facto, aquele arquivo revelou-se um verdadeiro manancial de informação nova. E tive alegrias raras: consultei documentos antiquíssimos que nunca tinham sido vistos, pois quando os desenrolava ou abria a caixa onde estavam guardados caía sobre a mesa a areia que na época era usada como mata-borrão. Era eu a primeira pessoa a ver aqueles papéis!

Fiz descobertas fascinantes. Umas importantes, outras insignificantes. Mas é soberba a sensação de descobrir coisas a que ninguém chegou antes.

A minha coroa de glória naquela investigação não seria, porém, obtida ali, naquele arquivo. Ao olhar de fora para o Palácio de Belém, havia uma coisa que me intrigava: por que é que a entrada se fazia por uma rampa lateral (aquela rampa que se vê da Praça Afonso de Albuquerque, que à entrada tem duas guaritas onde se abrigam guardas republicanos de capacetes emplumados) e não através de uma alameda central?

Não seria mais natural que a entrada do palácio se fizesse, como noutros palácios, por uma avenida digna, centrada com o edifício?

E aí tive uma intuição: a entrada fazia-se por ali porque essa rampa já existia antes de o palácio ser construído. E existia porquê? Para servir o quê? A rampa desemboca hoje, na parte de cima, num pequeno largo chamado Pátio dos Bichos. E junto a este eleva-se um edifício onde o Presidente da República tem os seus aposentos privados, cuja arquitectura é muito diferente da do palácio, parecendo bastante mais antiga.

A primeira conclusão foi fácil e imediata: a rampa construiu-se para servir esse edifício anterior à construção do palácio. Ora, esse edifício mantém há muito tempo o nome de Arrábida. O que indicia que lá estiveram instalados em alguma época os frades arrábidos. E o que tinham os frades arrábidos que ver com aquele local? Os frades arrábidos foram, nem mais nem menos, os fundadores do Mosteiro dos Jerónimos. Aliás, os frades chamavam-se arrábidos ou jerónimos. Daí à descoberta foi um pequeno salto: no tempo em que os frades (que viviam no Convento da Arrábida, na serra com o mesmo nome) se dedicavam à construção do Mosteiro dos Jerónimos, tinham de ter um ponto de apoio em Lisboa. E qual foi esse? Foi aquele casarão que à época já existiria (ou foi construído para esse fim). E a dita rampa lateral que nos dias de hoje ainda dá acesso ao Palácio de Belém foi construída nessa altura.

Não se imagina o júbilo que senti quando fiz esta descoberta. Para o leitor, não terá grande importância. Para mim tinha uma importância gigantesca – pois, além de ser a primeira pessoa a descobri-lo, resolvia um mistério que há muito me intrigava. Isto explicava tudo: a rampa descentrada em relação ao palácio, o local onde os arrábidos pernoitaram durante a construção do Mosteiro dos Jerónimos (que, em linha recta, ficava a uns 150 metros de distância), o nome Arrábida pelo qual ainda é hoje conhecido o tal casarão.

Fiz outras descobertas, como expliquei, mas nenhuma tão importante como esta. Percebi, por exemplo, que no palácio existiu em tempos uma grande sala de baile que depois foi retalhada e que ninguém já sabia onde tinha sido. 

E no Palácio de Belém aconteceram episódios curiosos da nossa história, como a presença do Rei D. José no dia do Terramoto – que apanhou um susto tão grande que nunca mais quis dormir debaixo de tecto e entre paredes de pedra e cal, tendo montado uma tenda nos jardins onde dormia e fazia o despacho real. 
Terminado o texto, entreguei-o ao então secretário-geral da Presidência da República, Luís Pereira Coutinho. E Ramalho Eanes chamar-me-ia uns dias depois para me dizer: «Li o livro numa noite. Queria parar mas não conseguia.

É o melhor elogio que posso fazer». Fiquei radiante, como é natural. 
Umas semanas depois chamaram-me da Presidência para me pagar os 250 contos combinados. Quando esperava receber um cheque, recebi 250 notas de mil escudos. Meti-as no bolso do casaco com mil cuidados – e fui sempre de casaco apertado até à agência do banco. Nunca tinha transportado tanto dinheiro comigo! Nem voltei a transportar. l

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