O senhor Real Madrid

“Se eu fosse a minha mulher… luziria meias Berkshire”. Corria 1962 quando esta frase, acompanhada de insólita fotografia, deixou o presidente do Real Madrid de cabelos em pé. Santiago Bernabéu, líder histórico dos merengues, só descansou quando conseguiu retirar de circulação, ao fim de três dias, aquela campanha publicitária.

O senhor Real Madrid

Num sugestivo cartaz, o argentino Alfredo di Stéfano aparecia a gabar meias de vidro, apresentando-se com a camisola do Real em pose feminina – de mãos na cintura e pernas de mulher. A fotomontagem completava-se com uma bola junto aos pés, calçados com umas sabrinas.

Era uma das primeiras – se não a primeira – incursões de jogadores de futebol no mundo da publicidade. E Di Stéfano, então já vencedor de cinco Taças dos Campeões Europeus pelo clube espanhol, iniciara-se em grande estilo a troco de 175 mil pesetas.
A interrupção abrupta da campanha, por imposição de Santiago Bernabéu, obrigou-o a devolver o dinheiro, mas estavam lançadas as bases dos contratos de imagem que hoje proliferam no futebol. Alfredo di Stéfano, que aos 88 anos sucumbiu a uma crise cardíaca na passada segunda-feira, foi o primeiro jogador mediático a justificar essa aposta.

Três selecções e nem um Mundial

Chegara ao Real Madrid nove anos antes, em 1953, proveniente do Barcelona, no decurso de uma disputa legal entre os dois maiores clubes de Espanha. A 22 de Setembro, o avançado apanhou o comboio às dez da noite na Cidade Condal, onde estava apenas a treinar há um par de meses, e apeou-se na manhã do dia seguinte na estação de Atocha, na capital espanhola. Tinha dois jornalistas a aguardá-lo e cinco horas depois estreava-se no Real.

Numa medida que só pode ser entendida à luz de outros tempos, a FIFA decidira que, nas quatro temporadas seguintes, jogaria um ano em cada clube, alternadamente. A começar pelos merengues.

Como na imagem do anúncio que haveria de protagonizar anos mais tarde, os direitos sobre Di Stéfano estavam divididos ao meio: metade pertencia aos argentinos do River Plate e outros 50% eram dos colombianos do Millionarios. O Barça chegou a acordo com os primeiros, o Real entendeu-se com os segundos – e a FIFA lavou as mãos, com uma sentença salomónica.

Mas a situação não se prolongou por muito tempo. Ao fim de um mês na capital, os catalães abdicaram de Di Stéfano. “O Barcelona é demasiado importante para dividir um jogador com o seu rival”. O acordo foi selado antes de um clássico que o Real venceu por 5-0, com dois golos do ‘seta loira’, como era conhecido devido à sua velocidade e cor do cabelo.

O clube nunca mais seria o mesmo. Depois de 21 anos sem o título de campeão de Espanha, conquistou oito nas onze épocas seguintes e arrasou na Europa. “Dizer Di Stéfano é dizer Real Madrid”, afirmou Iker Casillas, o actual capitão de equipa, ao reagir à morte do ídolo merengue. No total, foram 307 golos em 371 jogos.

A fama não atraiu só convites para acções publicitárias. Em 1963, a maior estrela do Real, já por duas vezes vencedor da Bola de Ouro, foi raptada na Venezuela, durante a participação no Mundial de Clubes. Três homens armados, que se fizeram passar por polícias, chamaram-no à recepção do hotel onde a equipa estava instalada, mas como Di Stéfano não desceu do quarto, por pensar tratar-se de uma brincadeira, arrombaram a porta e levaram-no.

Informaram-no que seria levado para interrogatório, mas assim que entrou no carro ficou a saber que estava a ser sequestrado por motivos políticos. Eram elementos das Forças Armadas de Libertação Nacional, um movimento de esquerda, e mantiveram-no em cativeiro durante 57 horas, sem o molestarem. Comeu presunto com ovos ao pequeno-almoço e jogou dominó com os raptores, que pretenderam chamar a atenção contra a ditadura no país. Ao fim daquele tempo, libertaram-no numa avenida movimentada de Caracas.

Nascido em 1926 em Buenos Aires, Di Stéfano ingressou aos 18 anos ao River Plate, mas uma greve de jogadores por melhores condições levou-o aos 23 até à Colômbia e foi já com 27 que deu o salto para Espanha. Jogou até aos 40, os últimos dois, após a saída do Real, no Espanhol de Barcelona.

À medida que mudou de país, representou as três selecções nacionais, mas nunca disputou um Mundial. Em 1954, a Argentina renunciou a participar, em 1958 a Espanha não se qualificou e em 1962 lesionou-se.
Como treinador, teve uma carreira mais discreta, cujos pontos mais altos foram as passagens pelo Valência: na primeira sagrou-se campeão nacional e na segunda venceu a Taça das Taças. Também chegou a treinar o Sporting, em 1974, mas saiu ao fim de poucas semanas.
Nos últimos anos, tornou-se presidente honorário do Real Madrid e foi notícia em 2013 ao anunciar o noivado com a sua biógrafa, 50 anos mais nova. Ficara viúvo da mãe dos seus seis filhos em 2005 e pretendia casar outra vez.

Desconfiados das intenções de Gina González, os herdeiros de Di Stéfano garantiram a guarda dos bens em tribunal. A mulher, natural da Costa Rica, desapareceu pouco depois. Ficou o amor ao Real Madrid, que nunca abandonou.

“Ninguém escolhe onde nasce, mas encontrei o lugar onde pertenço”, escreveu, numa carta aberta de apoio a José Mourinho, quando o treinador português passou pelo clube. “Está no quadrado que formam as ruas Castellana, Concha Espina, Padre Damian e Rafael Salgado”. O estádio do Real Madrid.

rui.antunes@sol.pt