O que motivou a Ordem dos Advogados (OA) a promover uma manifestação em frente à Assembleia da República (AR), no dia 15, contra o novo mapa judiciário?
É um protesto inédito e de cidadania organizado pela Ordem, que conta com a colaboração de dezenas, senão centenas, de autarcas de todo o país. Perante uma reforma que vai criar obstáculos graves no acesso à Justiça, a OA desafia toda a sociedade a fazer um grande protesto de indignação para que o Governo atente ao grito do país nas ruas.
Que efeitos práticos espera?
Sensibilizar o Ministério da Justiça (MJ), o Governo e a AR para o drama que vai ser criado com esta reorganização judiciária, a partir de 1 de Setembro. Além de agravar assimetrias regionais, vai impedir milhares de cidadãos de dirimirem conflitos nos tribunais dos locais onde vivem. Espero que haja bom senso, que se suspenda este mapa judiciário e se ponderem soluções que não gerem tantos desequilíbrios.
Mas já não é tarde para isso?
Desde o primeiro momento que a OA se insurgiu contra o encerramento de tribunais e a desqualificação dos outros. Por outro lado, alertou sempre para este facto: fazer coincidir uma comarca com um distrito administrativo é uma forma de denegação de Justiça, uma vez que o cidadão fica geograficamente afastado dos tribunais.
A ministra da Justiça queixa-se de que a OA não deu contributos.
A senhora ministra tem vários pareceres da Ordem e nunca quis atentar a esses contributos.
Pode dar um exemplo concreto dessa desqualificação dos tribunais?
Em Viseu, por exemplo, vai ser criada uma instância central para tramitar os processos de valor superior a 50 mil euros de todo o distrito e os que precisem de intervenção de tribunal colectivo (ou seja, cuja pena é superior a cinco anos). Depois, ali, também serão criados tribunais especializados – de família e menores, execuções, comércio, trabalho, etc. Hoje, um cidadão de S. Pedro Sul tem um tribunal habilitado e competente para dirimir todos os litígios; com esta reforma, em todos os processos cuja alçada caiba na instância central ou no tribunal especializado, ele terá de se deslocar à capital de distrito. Esta exigência ao cidadão de se deslocar para fora da área do seu domicílio tem custos significativos, sobretudo no interior. Além de que não há investidor que queira investir num concelho sem um tribunal para cobrar uma dívida.
Mas não era necessário reformar? O actual mapa é do século XIX.
Mais do que alterar a geografia, o que devia ser feito era um investimento nos recursos humanos. Os tribunais não funcionam porque não há juízes nem procuradores suficientes e porque há um número muito insuficiente de funcionários (mesmo nesta proposta do MJ, ainda faltam 900). Portanto, o que acontecerá a partir de 1 de Setembro é o colapso de todo o sistema judicial. Isto pode-se inserir numa estratégia de privatização da Justiça: se os tribunais não funcionarem e estiverem afastados, está aberto o caminho para a instalação de meios alternativos de resolução de litígios, que servem os interesses de alguns privados mas não os do cidadão.
Hoje já há 70 concelhos sem tribunal.
Se o Estado considera que um concelho tem dignidade para se manter como concelho, também deve ter uma casa da Justiça. Mas o Governo, que não teve coragem de avançar com uma organização administrativa e não desqualificou qualquer concelho, vem agora desqualificar os tribunais.
Preferia o projecto de mapa judiciário do anterior governo PS?
Sem dúvida. Baseado nas NUT3, que tinham critérios de proximidade com os cidadãos mais acentuados e mais coincidências com as realidades económicas.
Mas também tinha o que chama 'desqualificação' dos tribunais.
Sim, mas o afastamento não era tão agravado. Quando a OA discutiu esse projecto com o então ministro Alberto Martins, conseguiu que se fizesse uma discriminação positiva, sobretudo no interior do país. A ministra da Justiça tem consciência de que os tribunais não estão preparados para que a reforma entre em vigor a 1 de Setembro: não foram feitas as necessárias obras nos tribunais, não há plataforma informática adaptada e faltam funcionários. Está instalado o mais perfeito caos, em que ninguém com honestidade pode prever o que acontecerá.
A Ordem também vai apresentar uma queixa-crime.
No dia da manifestação, vamos entregar na Procuradoria-Geral da República uma queixa contra os membros do Governo que aprovaram o decreto-lei do mapa judiciário, por atentado contra o Estado de Direito. Entendemos que, com a criação de 23 comarcas, a eliminação de 47 tribunais e a desqualificação de 198, subvertem-se as regras do Estado de Direito. Com os cidadãos esmagados por impostos e as custas judiciais a ascenderem a valores exorbitantes, há uma verdadeira denegação de Justiça. Temos a obrigação moral de avançar com a queixa.
Não é um acto quase terrorista?
Um acto de terrorismo é este novo mapa judiciário e esta subversão do Estado de Direito. A legitimidade democrática que eu reconheço à maioria na AR e ao próprio Governo resulta de um programa eleitoral sufragado nas urnas – e no qual eu própria votei, enquanto cidadã. Mas nesse programa eleitoral não constavam o encerramento e a desqualificação de tribunais, nem a privatização da Justiça. Portugal é o único país com uma lei que prevê os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos e continua a fazer da lei letra morta. Fazem-se as maiores monstruosidades e ninguém extrai consequências.
O anterior Governo também devia ser responsabilizado pela situação das finanças públicas?
Qualquer titular de cargo político que não acautele o interesse público e se desvie dos princípios do Estado de Direito deve ser responsabilizado.
Não há nada de positivo neste mapa judiciário?
Sim, a nova forma de gestão prevista para os tribunais é mais moderna e adaptada às exigências.
O dia-a-dia dos tribunais já está a ser afectado pela reforma?
Desde Janeiro que as diligências em muitos tribunais são adiadas, sem marcação de nova data, porque as magistraturas estão na expectativa da entrada ou não em vigor do mapa. Também tem havido sucessivas alterações de última hora. Por exemplo, está previsto um Tribunal de Comércio em Aveiro que, soubemos agora, ficará provisoriamente instalado em Anadia, porque há obras que não estão feitas. Quando se avança para uma reorganização tem de se ter em conta os recursos. Vão faltar salas de audiência e gabinetes para os juízes e não há condições de trabalho para os funcionários.
Que alternativa propõe, então?
A Ordem apela ao Governo para que, pelo menos, suspenda esta reorganização e atente às distintas realidades locais. Se quiser avançar com base nos distritos, vamos ver como isso pode ser feito de forma a dar condições aos tribunais e fazendo discriminações positivas: se há distritos em que o facto de os tribunais estarem concentrados numa capital não representa um factor de denegação de Justiça, há outros em que isso acontecerá, pelo seu isolamento e falta de acessibilidades.
Há neste mandato de Paula Teixeira da Cruz algum aspecto positivo?
Tenho de pensar… A ministra Paula Teixeira da Cruz padece de um defeito de origem: pertence a uma grande sociedade de advogados de Lisboa e não conhece o país nem a realidade dos tribunais. Deixou-se impressionar pelos interesses das grandes sociedades, que aplaudem esta reorganização judiciária: com 23 sucursais dos seus escritórios, ficam com uma cobertura nacional. Faço um juízo muito crítico da sua actuação. E faço-o com algum desgosto, pois fiquei satisfeita quando ela foi nomeada, por lhe reconhecer coragem e determinação e se tratar de uma advogada e de uma mulher.