Isto acontece hoje em quase todas as actividades criativas. Grande parte dos críticos de cinema valoriza sobretudo os filmes chatos, os filmes que põem os espectadores a dormir, ou então aqueles que são incompreensíveis para uma inteligência comum.
Simultaneamente, os mesmos críticos arrasam os filmes mais divertidos ou os que se vêem descontraidamente com prazer. Conheço muitas pessoas que dizem: «Os filmes com cinco estrelas são aqueles que nunca vou ver».
Mas isto, repito, não sucede apenas no cinema – acontece na literatura, na pintura, na escultura, mesmo na música.
Os livros que os críticos encartados recomendam são por vezes ilegíveis, não se percebem ou não têm nexo. Não vou citar nomes, porque a lista seria infindável, mas acontece-me com frequência pegar em livros celebrados pela crítica literária e não perceber praticamente nada do que estou a ler.
Leio três páginas, constato que não me ficou nada dentro da cabeça, volto atrás, releio as mesmas três páginas e fico com a mesma sensação de incompreensão e vazio, volto ao princípio – e acabo por desistir.
Ao lermos certos livros sentimo-nos infinitamente estúpidos. Mas, passada a primeira impressão, pomo-nos a pensar: ‘Se eu não percebo, quantas pessoas perceberão? Serei assim tão mais limitado do que a maioria dos leitores? E alguns destes que dizem que percebem, e que gostam, não o farão apenas com receio de parecerem estúpidos ou ignorantes?
A literatura, em muitos casos, passou a ser um jogo de escondidas. Está sujeita a ‘critérios literários’ que a maioria dos leitores desconhece e nada têm que ver com o prazer da leitura. Muitos dos livros mais valorizados por estes ‘critérios’ dão um trabalhão a ler. A leitura torna-se um tormento, quase uma penitência.
Por vezes sentimo-nos na obrigação de ler livros que a crítica considera «indispensáveis». «Um livro obrigatório, que não pode deixar de ler». Mas depressa verificamos que só com imensa paciência conseguiremos chegar ao fim.
Ora, era suposto a literatura transportar-nos – em vez de sermos nós a transportá-la, como quem carrega uma cruz.
Os livros de Eça dão gozo, deliciamo-nos com a história, com as descrições, com o humor de certas situações. Mas esse prazer é-nos hoje negado por escritores que se estão nas tintas para os leitores – e às vezes parecem gozar connosco.
Folheei há dias um calhamaço de uma conhecida escritora, pensando tratar-se de uma prosa fecunda de uma pessoa cheia de coisas para dizer. Verifiquei porém, com espanto, que muitas páginas só tinham uma palavra impressa. O resto era em branco…
Isto também explica parcialmente as quedas brutais das tiragens dos livros. Em tempos escrevi a história da editora Bertrand. Para o fazer, folheei catálogos antigos e apercebi-me do enorme sucesso que faziam as obras de Eça, de Camilo, de Júlio Dinis e de outros autores menos conhecidos. Faziam-se sucessivas reedições dos seus livros. Ora, hoje os editores vêem-se e desejam-se para vender meia dúzia de exemplares das obras que publicam.
Os livros celebrados pelos críticos são, como se disse, chatos – e os que não são chatos são ignorados por eles e ficam no esquecimento. Sobra a literatura de aeroporto, que se consome como pastilha elástica – e que, sendo objecto de um marketing muito agressivo, consegue vender paletes de livros. Literalmente. Mas esse é um caso à parte.
O que se diz sobre a literatura vale para a pintura e outras artes visuais. Criou-se uma espécie de manto que cobre os artistas e os críticos, fabricando um meio artificial que funciona em circuito fechado. E as pessoas compram as obras não porque gostem delas mas porque acham que fica bem possuí-las – ou na esperança de que se valorizem.
Mas eu não queria nesta crónica falar de literatura e arte mas sim de futebol.
É que também no futebol se caminha desgraçadamente no mesmo sentido. Estão a aparecer uns críticos que usam uma linguagem hermética que faz lembrar alguns críticos cinematográficos ou literários.
Empregam termos que desconhecemos, como «posição 6», «posição 8», «posição 10», «duplo pivô», «médio ala», «espaço interior», «diagonal», «entrelinhas», etc. Suponho que serão vocábulos usados nos compêndios futebolísticos ou então nos cursos de treinadores. Palavras criadas para serem usadas por profissionais, mas que são hoje utilizadas a torto e a direito na imprensa e na televisão.
Por este caminho, o futebol corre o risco de se tornar uma chatice, uma ciência hermética. Às tantas, já não estamos a retirar nenhum prazer do jogo – mas sim a acompanhar os pormenores ‘técnico-tácticos’ para os quais os críticos nos chamam a atenção.
E de tanta ciência incluída, o futebol perde toda a alegria e espontaneidade.
Outra coisa que esses críticos nos querem fazer crer é que no futebol nada acontece por acaso, tudo é previsto, planeado e calculado, tudo é científico, não havendo lugar para o improviso e para a imaginação. Chega a dizer-se que a sorte e o azar não existem, que só existe o treino, a táctica, a aplicação, etc..
Ora, o que nos regala no futebol é exactamente aquilo que foge ao programado. É a finta, o remate inesperado, um toque de magia. Regala-nos ver jogar artistas como Messi ou Di María, que conseguem trazer para os grandes estádios a alegria de jogar e a espontaneidade dos miúdos da rua. Os apreciadores de futebol gostam de ser surpreendidos, não querem que tudo se passe como num jogo de playstation.
Claro que os melhores comentadores, embora usando aquela terminologia, acabam por também surpreender pelo improviso ou pela imagem que foge ao ‘futebolês’. Luís Freitas Lobo, comentando um grande golo de cabeça marcado nas alturas, dizia que o jogador tinha ido buscar a bola «ao cimo do arranha-céus». Bela imagem. Noutra ocasião comentava que o Atlético de Madrid jogava «de faca nos dentes», pelo empenho e agressividade que os jogadores punham em todos os lances. Outra bela imagem. Pena é que por vezes exagere nos elogios, dizendo a propósito de lances relativamente banais frases como «Acima disto não há mais nada».
Também gosto de ouvir Pedro Henriques. Não tem a riqueza de imagens de Freitas Lobo mas transporta para o comentário aquilo a que pode chamar-se ‘o espírito do futebol’. Tendo sido jogador, vive o jogo por dentro, não é um espectador, e consegue transmitir isso. Às vezes grita «Ui!», quando há uma entrada mais violenta, como se ele próprio tivesse sido atingido.
Este tipo de comentários valoriza o futebol.
Mas há outros que só o complicam. Por isso, digo: não transformem o futebol naquilo que outros fizeram à literatura ou ao cinema. Não criem critérios futebolísticos à margem do gosto dos espectadores. Não tornem o futebol uma actividade previsível, científica, sem espaço para o improviso. Não o transformem numa tremenda chatice. Não nos retirem o prazer de ver um bom jogo.
Não façam isso ao futebol, por favor!
jas@sol.pt