O livro da semana: Do outro mundo

Margaret Atwood partiu do ponto de vista das mulheres para a expressão da fantasia. Só depois adoptou a ficção científica.

De regresso à ilha da infância, no norte do Quebeque, ela procura o pai, enquanto sente ressurgir dentro de si mesma o filho que perdeu. Acompanham-na um namorado que ela não ama e um casal que se odeia. Ao quinto dia, a protagonista de Ressurgir vê uma garça-real, morta, pendurada de cabeça para baixo no ramo de uma árvore, com as asas caídas e abertas. «À nossa volta, a ilusão de espaço infinito ou de espaço nenhum, nós próprios e a obscura costa que parece que podemos tocar, a água entre uma ausência. O reflexo da canoa flutua connosco, os remos espelham-se no lago. É como mover-se no ar, sem nada por baixo a suster-nos: assim suspensos, vogamos para casa».

Margaret Atwood (canadiana, 74 anos, 15 romances publicados e 32 títulos de poesia, ensaio ou conto) é um dos gigantes contemporâneos, muito permeável à passagem do tempo (escreve sobre distopias futuristas com tanta facilidade como sobre mitologia grega ou o conceito de dívida), mas fiel às raízes da sua voz única. Encontramo-las em Ressurgir, o segundo romance, de 1972, marcado pelas memórias pessoais e pela figura do pai (aqui «encarado como um enigma arqueológico»), um entomologista cujas pesquisas a arrastaram, em criança, para a solidão da floresta.

À protagonista de Ressurgir, voltar à ilha permite-lhe regressar a si mesma, tornar-se «um lugar», longe da civilização, primitivo. Atwood explora com detalhe a fusão gótica entre a natureza real e a psicológica, as imagens poéticas como expressão turva da interioridade. A narradora ordena o quotidiano (colhe e cozinha alimentos, arruma, pesca, reencontra os bichos, a água e a terra) enquanto se auto-aliena, embrenhando-se (e nós com ela) nos seus pontos de vista e aproximando-se da loucura (que «é apenas uma ampliação do que já somos»). Por esta revelação do universo psicológico secreto das mulheres, Margaret Atwood foi primeiro associada ao feminismo. Com o tempo, esta opção expressiva revelou-se eficaz para gerir a sobreposição de realidade e fantasia no registo da ficção científica (que prefere chamar «especulativa»), como na trilogia que terminou em 2013 (Oryx and Crake, O Ano do Dilúvio e MaddAdam), sobre um cenário pós-apocalíptico.

 

 

 

Ressurgir

Margaret Atwood

Relógio D’Água

197 págs.,12.60 euros