Matar a mulher

Ainda não há muito tempo, a propósito de duas histórias trágicas – a de Palito e a de uma advogada de Estremoz morta pelo marido de uma sua constituinte em processo de divórcio –, escrevi sobre os crimes passionais. 

Disse que muitos homens não suportam que as mulheres os abandonem – e ainda menos que os troquem por outros – não necessariamente porque gostem muito delas mas porque isso mexe com a sua masculinidade. Sentem-se postos em xeque, feridos num ponto sensível. Daí a matarem as mulheres (ou as ex-mulheres) vai um passo. Um grande passo, porque matar alguém não é nenhuma brincadeira. Mas, para algumas mentes mais perturbadas, é um passo que se revela pequeno. 

Há duas semanas ocorreu um estranho assassínio. Um oficial da Marinha na reserva, de 47 anos, levou a mulher de 44 para um pinhal e matou-a com dois tiros no peito. A seguir, para se assegurar de que ficara bem morta, meteu-lhe uma bala na cabeça. Depois afastou-se do local do crime mas só andou uns 150 metros até se suicidar, também com um tiro na cabeça.

O casal era pai de dois filhos: um de 15, outro de 7, que ficaram órfãos em consequência do gesto tresloucado do pai. A família habitava numa vivenda de dois pisos, com bom aspecto, e era proprietária de um BMW relativamente recente.

Aparentemente, o casal dispunha de todas as condições para ter aquilo a que se chama ‘uma boa vida’. Olhando para os bens materiais, diríamos que não lhe faltava nada para ‘ser feliz’. Mas faltava com certeza, caso contrário não se teria dado aquela tragédia.

Não andaremos muito longe da verdade se dissermos que se tratou de um crime passional. Até porque o corpo da mulher foi encontrado semidespido. Os homens matam as mulheres ou porque deixaram de as suportar – e isso acontece sobretudo nos casais mais velhos – ou por ciúmes. Não significa isto dizer que Ana Cristina traía o marido. Significa apenas que, no seu cérebro doente, Paulo Rodrigues pode ter interiorizado a ideia de infidelidade. 

Sabe-se que o homem estaria com uma depressão e andava (ou tinha andado) em tratamento psiquiátrico. Ora, num processo desses, a pessoa perde frequentemente a autoestima – e Paulo pode ter começado a matutar que a mulher já não gostava dele, que os outros homens eram melhores do que ele, que ela iria deixá-lo, e estes pensamentos levados ao extremo podem conduzir a actos desesperados. «Tu não és para mim mas também não serás para mais nenhum» – é o que pensam aqueles que matam por ciúmes fundados ou infundados.

Quase não há dia em que os jornais não tragam a notícia de um crime passional. Não sei se esse tipo de crimes aumentou – ou se as notícias é que aumentaram. De facto, muitas vezes o mesmo crime é noticiado várias vezes para fazer render o peixe. Mesmo assim, a sua frequência é assustadora e tem certamente origem nas alterações que se têm verificado no relacionamento entre homens e mulheres. 

Até há bem pouco tempo, era raríssimo uma mulher deixar o marido. Isso só acontecia em situações extremas. Os homens é que tinham frequentemente amantes, algumas com casa posta; e as mulheres legítimas, mesmo que o soubessem – e muitas vezes sabiam –, fingiam não saber de nada. Se rompessem com os maridos, iriam para onde? E viveriam de quê, sendo certo que muitas não tinham independência financeira? Assim, as mulheres comiam e calavam.

Nos últimos anos tudo isso mudou. As mulheres são mais independentes e, com o avanço do feminismo, passaram a assumir com mais facilidade a ruptura. Há uma maior ligeireza nas relações, com as pessoas a casarem e descasarem como quem muda de vestido. 

Agora as mulheres protestam, recalcitram, fazem valer os seus direitos. E, quando decidem abandonar a casa e ir viver com outros, então é o fim da picada. Muitos homens não aceitam mesmo. E os mais loucos pegam numa faca, numa pistola ou numa caçadeira e lá vai disto.

Entretanto, a história do oficial da Marinha que matou a mulher num pinhal mete outro protagonista: um psiquiatra. O homem, como se disse, andava ou andou em tratamento psiquiátrico. Ora, o facto de ter cometido aquela loucura é uma derrota para o médico que o acompanhou. 

Em Portugal não há muito o hábito de recorrer ao psiquiatra. Ninguém quer assumir que está doente da cabeça, que precisa de ajuda. Nos Estados Unidos passa-se o contrário: não há indivíduo que se preze que não tenha o seu ‘psiquiatra assistente’, como tem um clínico geral ou um dentista. Ou, agora, um cirurgião plástico… 
Para muitas pessoas, a ida ao psiquiatra representa sobretudo a possibilidade de ter alguém com quem desabafar. Aliás, será pela mesma razão que as pessoas se confessam. Estão ali a contar a sua vida.
A diferença é que as confissões são de borla enquanto no psiquiatra os pacientes pagam (e bem) para terem alguém que lhes preste atenção. 

Como em todas as profissões, haverá psiquiatras bons e maus. Ainda por cima, é uma actividade propícia a muita charlatanice. Suponho que um psiquiatra não pode limitar-se a ouvir. Tem de ser capaz de ir mais longe. Pelo menos, tem de saber aconselhar o doente no sentido de o fazer sentir-se melhor. 
Mas as pessoas que vão aos psiquiatras têm, sem o saberem, outro objectivo: transferir para o médico a solução dos seus problemas. Deixam de tentar vencer o mal que as aflige, passando essa responsabilidade para cima do psiquiatra. 

Ora, qualquer que seja a doença, não dispensa uma reacção do doente. Se isso não acontecer, ninguém o salvará. Só se salvam os que lutam. 
Este é um problema.

Por outro lado, ao transferirem para o psiquiatra os seus problemas, muitos pacientes tornam-se doentiamente dependentes dele. É já um clássico a história da doente que se apaixona pelo psiquiatra. Infelizmente, tive casos desses na família. O sentimento de dependência torna-se tão forte, a pessoa interioriza de tal modo a ideia de que o seu bem-estar mental depende do médico, que confunde isso com paixão. 

Eu sei até que ponto as depressões condicionam os pacientes e lhes diminuem a vontade. Mas alguém tem de fazer-lhes perceber que a reacção começa por eles próprios e que ninguém os pode substituir nessa responsabilidade. 

É isso que o bom psiquiatra terá de conseguir: levar o doente a reagir por si. Mas aqui é que bate o ponto. Porque a situação de dependência interessa ao doente – para atirar os seus problemas para cima do médico, julgando libertar-se deles – e interessa ao médico – para não perder o doente. 

E quando o jogo interessa a ambos, é muito difícil mudar-lhe as regras. 
De qualquer modo, quando o paciente comete um acto desesperado – como na história que aqui tratámos – o psiquiatra deve sentir isso como um tremendo falhanço. E pensar bem no modo como exerce a profissão. 

jas@sol.pt