A família mais poderosa do país viveu anos acima das possibilidades através de um esquema ‘ponzi’ (um esquema em pirâmide que envolve o pagamento de rendimentos anormalmente altos aos investidores).
Ricardo Salgado foi constituído arguido em pleno colapso do grupo que ergueu nas últimas décadas.
O poder da família Espírito Santo tinha múltiplas ramificações, mas a face mais visível do grupo eram três sociedades constituídas no Luxemburgo, onde o grupo geria os interesses a nível internacional: Rioforte, Espírito Santo International (ESI) e Espírito Santo Financial Group (ESFG).
Estão todas sob gestão controlada pelos tribunais no Luxemburgo, uma espécie de ante-câmara da insolvência. O destino começou a ser traçado em 2008, quando a crise financeira fez com que Ricardo Salgado cometesse irregularidades para esconder a real situação financeira do grupo.
O Grupo Espírito Santo (GES) é o mesmo que o Banco Espírito Santo (BES)?
Não. O GES é um universo de cerca de 400 empresas ligadas entre si através de um complexa rede de participações financeiras, geridas no topo pelas três holdings que agora estão sob protecção de credores: ESI, Rioforte e ESFG. O BES era o principal negócio financeiro da família. A ESFG tem uma participação de cerca de 20% no BES, sendo o principal accionista.
O que causou as dificuldades no GES?
O endividamento excessivo. Com a crise global que começou em 2007-2008, a banca europeia passou ter regras mais exigentes, que implicaram sucessivos aumentos de capital para aumentar a solidez financeira. Para a família Espírito Santo conseguir injectar dinheiro no BES sem perder o lugar de principal accionista, as holdings endividaram-se cada vez mais. Essa dívida paga juros e havia novos empréstimos para pagar esses juros, no que se tornou vulgar chamar de esquema ‘ponzi’. Mas tornou-se cada vez mais difícil honrar os compromissos financeiros e angariar novos empréstimos. Alguns negócios ruinosos, como o imobiliário, contribuíram para o descalabro das contas, cuja situação real foi escamoteada.
Que irregularidades foram detectadas nas contas?
Para esconder a dívida galopante e a situação de falência técnica, as contas da ESI subavaliavam os passivos. Foram omitidos cerca de 1,2 mil milhões de euros de dívida, segundo uma auditoria externa solicitada pelo Banco de Portugal (BdP).
As holdings do grupo deixaram de pagar dívidas?
Sim. Em Julho, a Portugal Telecom não recebeu quase 900 milhões de euros de um empréstimo de curto prazo ao GES. Houve também clientes no Banque Privée Espírito Santo, que gere fortunas na Suíça, que não receberam de volta os investimentos que fizeram no grupo.
As empresas estão em insolvência?
Não. Solicitaram no Luxemburgo um processo de gestão controlada, anterior à insolvência. Foi designado um administrador para desenhar um plano de recuperação do grupo, algo equivalente a um Processo Especial de Revitalização em Portugal. Mas os credores têm de aprovar esse plano e, se não o fizeram, pode mesmo haver insolvência.
O que implica a gestão controlada?
Com o recurso a esta figura legal, quaisquer procedimentos legais dos credores para o reembolso da dívida ficam congelados. O Tribunal pode depois determinar um vasto leque de medidas: alongamento do prazo para pagar as dívidas, redução do montantes que serão devolvidos aos credores, venda de activos ou aumento de capital com entrada de novos investidores são as opções mais comuns.
Que negócios tem a família?
Muitas holdings da família não têm actividade propriamente dita: são um pequeno escritório no Luxemburgo, quase sem trabalhadores, em que os administradores apenas gerem partici-pações noutras empresas. Os negócios em que havia actividade real estão sobretudo concentrados na holding Rioforte: detém o hospital da Luz e gere o de Loures através de uma Parceria Público Privada (PPP). Tem os hotéis Tivoli ou explorações agropecuárias no Brasil e no Paraguai. No ramo financeiro, o BES e a seguradora Tranquilidade são os principais activos da família.
Por que estão no Luxemburgo?
Depois da nacionalização do BES no processo revolucionário do 25 de Abril, a família Espírito Santo começou a reorganizar-se fora de Portugal. Optou por praças financeiras como o Luxemburgo, o Reino Unido ou a Suíça, onde a facilidade de fazer negócios, o sigilo bancário e as baixas taxas de imposto são factores atractivos. A já famosa ESI, onde foram agora detectadas irregularidades, foi criada precisamente em 1975.
Que consequências para a economia tem a situação no GES?
Várias empresas, que ainda não são conhecidas na totalidade, emprestaram dinheiro ao grupo. Américo Amorim e a Caixa Geral de Depósitos, por exemplo, são apontados como tendo exposição à divida do GES. Estas empresas terão de assumir as perdas com os investimentos que fizeram. A sua capacidade financeira pode ser afectada e, se forem em número alargado, provocar danos na actividade económica (menos capacidade para investir, por exemplo).
O que aconteceu no BES?
O banco também emprestou dinheiro a empresas do grupo, num total de 1,2 mil milhões de euros, e tinha uma 'almofada' de 2,1 mil milhões de euros para fazer face a insuficiências. Mas nos últimos dias antes de Ricardo Salgado sair de funções, houve operações de gestão danosa que aumentaram a exposição aos negócios ruinosos da família Espírito Santo. O banco apresentou um prejuízo recorde no primeiro semestre e ficou descapitalizado, obrigado a uma intervenção do Banco de Portugal.
Qual a solução para o banco?
O BES foi separado em dois. Um chama-se Novo Banco e fica com a generalidade da actividade ‘boa’ do banco, com os depósitos, os balcões e os funcionários. Será capitalizado sobretudo através de fundos públicos, com uma injecção de 4,9 mil milhões de euros. O outro banco fica como um bad bank, apenas com os activos problemáticos, em grande parte relacionados com os negócios da família Espírito Santo. Entra em liquidação e ficará dos accionistas do BES, que terão de assumir as perdas.
Como é conseguido o dinheiro?
Os 4,9 mil milhões serão injectados através de um fundo de resolução da banca, que funciona com contribuições dos bancos. Mas como este fundo não tem ainda verbas suficientes – foi constituído apenas em 2012 e tem apenas 380 milhões – receberá um empréstimo do montante em falta, através da linha pública de capitalização criada no programa da troika, que ainda tinha 6,4 mil milhões de euros.
A família Espírito Santo perdeu o banco?
Sim. Fica apenas com principal accionista do banco mau. O Novo Banco é detido na íntegra pelo Fundo de Resolução.
Como fica o BES em Angola?
Fica no banco mau. O BES Angola (BESA) tem um volume elevado de crédito malparado e, como é uma subsidiária do BES em Portugal, pode afectar os resultados da casa-mãe. Mas deverá haver uma solução que não implica prejuízos. O Estado angolano concedeu uma garantia sobre os empréstimos em incumprimento, pelo que Luanda deverá assegurar um aumento de capital do BESA. O BES perde a participação maioritária que tem hoje, mas recebe o dinheiro que injectou no banco angolano.
Os depósitos do Novo Banco estão garantidos?
Sim, o BdP dá essa garantia como certa para todos os depositantes.
O que fez o Banco de Portugal ao longo deste processo?
O regulador bancário foi quem primeiro detectou os problemas de endividamento da ESI no ano passado e determinou logo que o banco reduzisse os empréstimos ao grupo e que aumentasse o capital. Depois investigou as relações de financiamento entre o banco e as holdings, nomeadamente através de uma auditoria externa, e impôs medidas para isolar os problemas do GES. Determinou medidas como uma provisão de 700 milhões de euros na ESFG para acautelar um eventual risco de incumprimento. Teve ainda um papel determinante na mudança na administração do banco, que culminou com a saída de Ricardo Salgado e a entrada de Vítor Bento e foi quem determinou a solução deste fim-de-semana.
Por que mudou a administração?
Em determinada altura da supervisão reforçada ao BES, o banco não acatou decisões do regulador para separar o BES do GES. Tornou-se cada vez mais patente que o comportamento dos gestores à frente do banco não era compatível com a tomada de decisões. No fundo, o regulador entendeu que os fundos confiados ao banco, nomeadamente depósitos, não estavam a ser bem geridos.
A guerra familiar entre Ricciardi e Salgado teve a ver com a situação do grupo?
Foi o primeiro sinal de que as coisas não estavam a correr bem. Numa já célebre reunião do Conselho Superior do grupo, em Novembro do ano passado, depois de haver pedidos de prestação de contas do GES por parte do primo José Maria Ricciardi, Ricardo Salgado dá um murro na mesa e impõe um voto de confiança na sua gestão. Ricciardi rejeita e abre uma disputa sem precedentes na praça pública.
Ricardo Salgado foi agora detido por causa da situação do grupo?
Não. O ex-presidente do BES foi constituído arguido no âmbito da operação Monte Branco, por ter alegadamente retido verbas de um sinal da venda da Escom à Sonangol – que nunca chegou a concretizar-se. Há dois anos, o gestor foi ouvido como testemunha do processo, e foi forçado a regularizar o IRS para incluir as verbas que recebeu.
Existem outros processos no Ministério Público relacionados com Salgado?
Além da investigação Monte Branco, a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários já revelou que encaminhou para o Ministério Público indícios de crimes financeiros no BES: abuso de informação privilegiada e abuso de confiança. E é muito provável que o BdP tenha também encaminhado para a PGR os indícios de irregularidades nas holdings.
O que vai acontecer a Salgado?
Depende da Justiça. No caso Monte Branco, é arguido por branqueamento de capitais, abuso de confiança, falsificação e burla agravada. No limite, são crimes que dão pena de prisão. E é expectável que surjam multas e outros processos-crime devido às investigações da CMVM e do BdP.