A deputada, que tanto se escandalizou – eventualmente com razão – com os insultos na sua página de Facebook, acabou involuntariamente por se ‘insultar’ muito mais a si própria com os erros ortográficos que cometeu. É que estes vão persegui-la durante muito mais tempo e com muito mais eficácia do que os insultos de que foi alvo.
A deputada alegou que é disléxica (ou seja, que baralha as letras), que estava cansada, que não reviu o texto, etc. Mas se isso explica em parte os erros, não descansa os eleitores. Porque a dislexia e o cansaço podem levá-la a cometer outros erros, eventualmente até mais importantes. Cesteiro que faz um cesto faz um cento. Quem comete de rajada três erros ortográficos tão básicos pode naturalmente cometer (e não: cumeter) outros, de outra natureza.
Porque o problema maior nem serão os erros – mas o que eles revelam sobre a pessoa. Se Catarina Marcelino é efectivamente disléxica, isso poder-se-á reflectir noutras confusões… E se é descuidada, a ponto de não reler o que escreve – o que se compreende mal, dado ter responsabilidades públicas –, também o deverá ser noutros aspectos.
E há mais: estes erros mostram uma pessoa que, além de dominar mal a língua, lê muito pouco ou nada. Um indivíduo com hábitos mínimos de leitura olha para uma palavra de uso relativamente corrente, como ‘sensura’, e percebe instantaneamente que está mal escrita. É uma questão de memória visual, que se adquire com a leitura. Estes erros admitem-se numa pessoa sem habilitações, que escreve de ouvido e não tem nenhuma base cultural. Não se admite numa deputada, que ainda por cima é licenciada (em Antropologia).
E chegados aqui, outra interrogação surge: como é que uma pessoa assim conseguiu tirar um curso superior? Este exemplo parece mostrar a permissividade do nosso ensino. A sua gritante falta de exigência.
Tem-se criticado muito o ministro Nuno Crato a propósito das avaliações – quer de alunos quer de professores. Ora, casos como este provam que o ministro tem carradas de razão. O ensino em Portugal tornou-se demasiado facilitista. Os alunos passam de uns anos para os outros sem cumprirem os mínimos. A abolição dos exames e o abuso dos ‘trabalhos de grupo’ (que disfarçam a ignorância de alguns, escondidos atrás da sabedoria de outros) promoveram a passagem de canudos a pessoas sem conhecimentos elementares nem um background cultural aceitável.
Sou professor universitário e vejo o desnível, o abismo que existe entre a qualidade dos alunos. Há alunos muito bons e outros muito maus. Não há um padrão, nem um patamar mínimo. Percebe-se que os muito bons evoluíram no meio famíliar ou aprenderam por eles próprios. Os que não tiveram essa sorte, ou não têm as mesmas capacidades, são muito maus. O ensino está hoje muito entregue ao talento individual. Mas isso é a falência do sistema. Quando quase tudo depende das pessoas, é porque o sistema de ensino não funciona. Não é capaz de fornecer aos alunos, nos vários graus – básico, secundário e superior – uma base de conhecimentos e de cultura a partir da qual eles possam evoluir e desenvolver-se.
Nuno Crato iniciou um caminho que, a bem do país, não deverá voltar para trás – e que, para mim, se pode resumir numa frase: substituir a facilidade pela exigência. Percebo que as pessoas se revoltem contra isto, protestem, barafustem. Não há ninguém que, numa encruzilhada, não escolha o percurso mais fácil. Quer os alunos quer os professores (embora no caso destes seja menos aceitável), se tiverem essa possibilidade, não a desperdiçarão.
O que não se admite é o envolvimento dos sindicatos nesses protestos. Será que os sindicatos, para defenderem os seus associados, devem estar contra a exigência? E a crítica à exigência deve ser um argumento de combate político? Pode ser sequer um argumento?
A exigência tem de ser a todos os níveis: ao nível dos alunos e ao nível dos professores. Se aos alunos se exigem exames, aos professores também se devem exigir. Ao contestarem as avaliações, os professores estão a dar aos alunos um péssimo exemplo.
Voltando à nossa deputada Catarina, há uma pergunta que não pode deixar de ser feita: como consegue chegar a deputada uma pessoa que não passaria num exame do 4.º ano (antiga 4.ª classe)?
Para chegar a qualquer cargo público um indivíduo tem hoje de fazer concursos, prestar provas. Ora, para um lugar tão importante como o de membro do Parlamento, chega-se por artes mágicas?
Era suposto, quando um cidadão atingisse esse nível, ter passado por um crivo, por um conjunto de ‘provas’ que permitissem aferir as suas qualidades e competências. Acontece que, se concorresse a certos lugares de muito menos responsabilidade, a deputada chumbaria logo na prova de Português – que, nem por acaso, é uma das disciplinas nucleares do nosso sistema de ensino.
Será que, ao contrário do que pensamos, pode chegar a deputado uma pessoa qualquer?
jas@sol.pt