A questão arrastava-se há anos. A magistrada pedira várias vezes para ser dispensada de trabalhar aos sábados, pois isso era incompatível com os preceitos da igreja a que pertence. Porém, o organismo onde exercia funções judiciais nunca atendeu o pedido – e o Conselho Superior do Ministério Público, instado a pronunciar-se, também indeferiu a pretensão – explicando que, não havendo flexibilidade no horário de trabalho dos procuradores, a dispensa não era legítima. E acrescentava: se o pedido fosse aceite, a procuradora ficaria em situação de desigualdade relativamente aos colegas. Concluía dizendo que a procuradora, sabendo as suas condicionantes em matéria de horários, «deveria ter escolhido outra profissão».
O Tribunal Constitucional arrasou, porém, este acórdão. Disse que a argumentação do Supremo Tribunal Administrativo não tinha «qualquer cabimento». E reconheceu as razões da magistrada, adiantando que «o Estado não assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar».
Esta decisão, que à primeira vista parece razoável e democrática, visando garantir os direitos das minorias, abre, contudo, um complicadíssimo precedente. Uma autêntica Caixa de Pandora.
Imaginemos que a senhora magistrada, em vez de ser procuradora da República, era controladora aérea, condutora da Carris ou funcionária de uma empresa de segurança, profissões que trabalham sete dias por semana. Ao dizer-se indisponível para fazer serviço aos sábados, estaria a obrigar os colegas a trabalhar mais nesses dias, para compensar a sua ausência.
Imaginemos, agora, que todos os praticantes de todas as religiões existentes em Portugal começavam a alegar os seus impedimentos: dias de descanso obrigatório semanal, feriados, rituais, etc.
Imaginemos ainda que os católicos, que constituem a grande maioria da população, alegavam que o domingo é dia santo e pediam dispensa do trabalho. Ser-lhes-ia reconhecido esse direito? Ou há religiões que, por serem mais rígidas, podem usufruir de mais privilégios?
Ora, se tudo isto, acontecesse, era o fim da picada. Se os praticantes de todos os credos existentes em Portugal reclamassem os seus direitos, o país parava.
Até porque, embora o acórdão se refira apenas ao Estado – que, segundo o TC, deve garantir aos seus funcionários condições para praticarem a religião que professam –, é óbvio que também se aplica aos privados. Caso contrário, estaria a criar-se uma situação de desigualdade gritante entre os trabalhadores do sector público e os do sector privado, o que vai contra a Constituição.
Com aparente bom senso, o Supremo Tribunal Administrativo tinha dito que, sendo a senhora adventista, deveria ter procurado uma actividade compatível com as limitações impostas pela sua religião. Não tinha de ser o patrão (e os colegas) a adaptar-se a ela, mas sim o contrário.
De facto, quem tem limitações de qualquer espécie (desde condicionamentos religiosos a fobias) é que deve encontrar uma actividade que se adeqúe a elas.
Um indivíduo que se candidata a um lugar numa consultora financeira multinacional, com clientes em vários partes do mundo, depois de conseguir o lugar não pode dizer que se recusa a sair do país por ter fobia de andar de avião. Ou quem aceita um lugar de caixa num banco não pode vir posteriormente alegar que a sua religião não lhe permite mexer em dinheiro em certos dias da semana.
Uma pessoa, quando vai para outra sociedade, também tem de se adaptar. Quando visitei a Índia tive de me descalçar em certos locais. Na cidade santa dos sikhs andei uma noite inteira de pés descalços, com um frio de rachar, porque as regras a isso obrigavam. No Paquistão, a minha mulher tinha de usar lenço na cabeça – e não se sentiu violentada por isso. Em Roma, sê romano. Temos de ser nós a adaptar-nos aos usos e costumes, às regras, aos horários, à comida do lugar em que estamos – e não exigirmos que sejam eles a adaptar-se a nós.
Mas o Tribunal Constitucional entendeu diferentemente. Julgo que, possivelmente inebriado pelo protagonismo que tem tido no país nos últimos meses, o TC está a assumir uma arrogância e um vedetismo incompatíveis com as suas funções. Tomou o freio nos dentes. Faz interpretações ora muito subjectivas ora excessivas dos princípios constitucionais.
Neste caso da procuradora adventista, faz mesmo uma leitura fundamentalista da Constituição – que não resiste, como se viu, a um elementar raciocínio lógico. Valorizou o direito da magistrada a praticar a sua religião mas borrifou-se para o princípio da igualdade entre os funcionários.
O TC pega nos direitos fundamentais – liberdade religiosa, confiança no Estado, etc. – e a partir daí interpreta-os a seu bel-prazer e lá vai disto. Se este acórdão fizer jurisprudência, o país poderá parar.
Uma última questão.
Caso o Governo legislasse contra a burka, como sucedeu em França, o que aconteceria? Pela mesma lógica, o TC chumbaria o diploma pois isso atentaria contra a liberdade religiosa dos muçulmanos. De facto, os fundamentalistas islâmicos impõem às mulheres o uso da burka em locais públicos, pois só os maridos podem ver-lhes o rosto ou um centímetro de pele (de outro modo, isso poderia provocar nos outros homens desejos carnais). Como descalçaria o TC esta bota?
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