Já lá vai o tempo em que só se podia comer mariscos nos meses com ‘r’ – ficava de fora quase todo o Verão, excepto Setembro, por causa das intoxicações alimentares. Ainda em Março e Abril, últimos meses devidamente aconchegados com o dito ‘r’, os jornais veicularam com grande estardalhaço a interdição de pesca em quase todo o país de bivalves (desde o estuário do Lima à ria Formosa, passando por Aveiro e Mondego), devido à presença de fitoplâncton, produtor de toxinas marinhas ou de níveis tóxicos acima dos valores legais.
Ora estas interdições surgem agora em qualquer altura, seja no Verão ou Inverno ou nos meses com ou sem ‘r’. Mas as amêijoas, sobretudo à Bulhão Pato (ver caixa), apetecem sobretudo com o calor, e mesmo aí é interdita a sua pesca. O que faz com que os comerciantes e restaurantes das zonas afectadas importem amêijoas de outras regiões, durante essa interdição.
Passando eu férias na Foz do Arelho, gosto especialmente de comer as amêijoas da Lagoa de Óbidos. Quando a pesca está aqui proibida, muitas vezes elas vêm da Trafaria – onde até são carnudas e de casca mais dura, mas que a mim, talvez horrorizado pela poluição da foz do Tejo, parecem saber-me um tanto a fénico.
Não se trata de excesso de regionalismo, pois as minhas amêijoas preferidas são as da ria Formosa, no Algarve: carnudas, grandes, de casca dura e escura.
Um prato agradável mas que tenho visto muito estragado por más amêijoas é o spaghetti alle vongole. Parece-me serem usadas aí amêijoas asiáticas ou americanas, trazidas já para as nossas águas, e a reproduzirem-se, de forma a surgirem muito mais baratas nos mercados (quando não vêm mesmo de fora, e até congeladas), mas estas são pálidas e sensaboronas.
Para combater esta insipidez, passei a fazer em casa, com o maior sucesso junto de todas as visitas, um esparguete à Bulhão Pato. A umas amêijoas com esta receita, junto um esparguete branco e al dente, previamente cozido – misturando tudo na panela em que se cozinharam as amêijoas.
Outro prato de amêijoas muito popular na gastronomia portuguesa é menos de Verão: a carne de porco à alentejana.
O mais curioso desta receita é a sua história (será lenda?): a origem é algarvia, onde os porcos eram alimentandos a farinha de peixe; acrescentava-se-lhe as amêijoas, para disfarçar o sabor a peixe da sua carne, e chamava-se ao porco ‘alentejano’ (o nome do prato era inicialmente anunciado nas casas de comidas algarvias como ‘carne de porco alentejano’) – muito antes de os produtores do Alentejo, nos passados anos 80, terem criado o porco regional, com mais carne e menos gordura, ultrapassando as épocas fatais das pestes suínas, a que eram mais atreitos os porcos pretos. Ficou daqui um excelente prato da gastronomia tradicional portuguesa – mas agora sem porcos alimentados a farinha de peixe.
Claro que a mania das amêijoas à Bulhão Pato é para se ter em Portugal – já que em Espanha, apesar de a Galiza ser a zona onde se pescam mais amêijoas, apetecem mais os muito em conta langostinos de Sanlúcar; ou em França as ostras, mesmo quando são portuguesas; ou na Bélgica os mexilhões; e por aí fora.
À Bulhão Pato
Esta é a receita mais popular de amêijoas em Portugal – cozidas em azeite, alho, um nada de mostarda e coentros – e talvez das mais simples, como sucede com muitos dos melhores pratos, mas a sua origem não está bem definida.
O nome vem do poeta ultra-romântico Raimundo António de Bulhão Pato (1828-1912) – zangou-se com Eça quando este o desmentiu ter inspirado o seu Alencar, dos Maias – que chegou a fornecer receitas para a obra O cozinheiro dos cozinheiros (1870), de Paul Plantier. Embora se saiba que era um bon vivant e gastrónomo, íntimo de figuras da sua época como Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Andrade Corvo, Columbano ou Latino Coelho, nada há que confirme a sua autoria nessa receita. Talvez a apreciasse, e fosse assim associado o seu nome a ela.
Tenho os três volumes das suas Memórias (publicou-as em quatro na altura, entre 1894-1907, dando uma ideia clara do ambiente intelectual português do virar do século XIX para o XX), e não me lembro de qualquer menção lá feita a essa receita.
Originário da média aristocracia, filho de poeta português e de mãe espanhola, apesar de pertencer à Academia Real das Ciências de Lisboa não conseguiu viver apenas da sua escrita, tendo sido 2.º Oficial da 1.ª Repartição da Direcção Geral do Comércio e Indústria.