Carlos Melo: ‘O Brasil ainda não chegou ao ponto de discutir a questão moral’

Em entrevista ao SOL, Carlos Melo, cientista político, professor do Insper e autor de livro ‘Collor – O Actor e as suas Circunstâncias’ (ed. Novo Conceito), explica a campanha para as eleições Presidenciais do Brasil, a 5 de Outubro, e clarifica porque Dilma Rousseff ainda não tem a reeleição garantida, apesar de uma sondagem do…

Tem ideia de quem vai ganhar estas eleições?

Quem tiver mais votos. O que para a História da América Latina não é algo de menor importância. No caso do Brasil, esta é a sétima eleição depois da ditadura, que terminou em 1989. Dos quatro Presidentes eleitos desde então, dois terminaram o mandato e acabaram reeleitos, são os casos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e de Lula da Silva. Dilma é a terceira que cumpre o mandato até ao fim. Portanto, é uma democracia recente e muito jovem. 

O que está a dificultar a reeleição de Dilma Rousseff?  

Dilma foi muito menos pragmática que os seus antecessores.É certo que a conjuntura não a favoreceu tanto como a FHC e a Lula, mas ela também não se ajudou e não soube ler a realidade. Dilma é mais presa à ideologia e isso, em momentos de crise, como a que está a bater forte no Brasil, é crucial. 

A realidade mudou desde 2010, ano em que sucedeu a Lula. Dilma não se adaptou a esta mudança?

A Presidente do Brasil brigou com a realidade e, num momento em que tinha um desafio histórico, optou pela tecnocracia. O Presidente de um país não pode ser só um gerente. Tem de ser um político, um estadista e tem de ser capaz de olhar o futuro. As políticas de incentivo ao consumo e de distribuição de renda desenvolvidas por Lula funcionaram como política anti-cilcias em período de crise internacional, mas revelaram problemas na oferta, como a falta de infra-estruturas, de estradas, de portos, de aeroportos, de educação de qualidade e a necessidade de melhorar a produtividade do trabalhador brasileiro. Estes, ao fim e ao cabo, eram desafios para Dilma mas não tiveram resposta porque ela achou que o Estado era capaz de os resolver sozinho. 

A iniciativa privada acusa o governo de não ter uma política atractiva de incentivos fiscais.

Dilma não soube estabelecer uma parceria eficaz com a iniciativa privada para que o problema das infra-estruturas fosse ultrapassado. Além disso, foram definidas regras muito ortodoxas e exigentes para o capital. Se o capital não tem condições vantajosas, não investe. É assim em qualquer lugar do mundo e é assim no Brasil. Resultado: chegamos a um momento em que a inflação está acima do que devia, o investimento está a descer e o desenvolvimento está por conseguir. 

Face a isso, como é que se tenta uma reeleição? 

O que Dilma tem vindo a dizer é que, apesar de não ter desenvolvimento, não houve desemprego nem redução de salários. Mas o que ainda não disse é que vai precisar de aumentar os juros e de cortar alguns gastos públicos, mesmo que proteja a área social. Caso contrário, não consegue manter emprego nem salários tal como estão. 

Nenhum dos candidatos está a assumir que vai aumentar impostos. 

É verdade. Mas Marina Silva quer dar autonomia ao Banco Central e isso significa que os juros vão aumentar. Não creio que ela vá cortar nos programas sociais, se for eleita, como acusam o PT e Dilma, mas vai reduzir os custos de alguns ministérios. Para Dilma, tudo isto leva ao desemprego. Ela tem razão. Mas será que esse emprego é sustentável com as condições que temos hoje? Com menos de 1% de crescimento e 6% de inflação? Não é sustentável e esse é o conflito. O governo começou o ano a dizer que o Brasil ia crescer 4% e hoje cresce menos de 1%. Alguma coisa está errada. 

Como é que o eleitorado percepciona isso?

Há uma pressão muito grande para que Dilma reconheça que a sua política falhou e que o rumo precisa ser alterado. Mas ela tem resistido e quando reconhece algum erro fá-lo de uma forma atabalhoada. Há semanas, pressionada pela oposição, disse que tudo ia mudar, que o ministro da Fazenda ia ser outro, quando toda a agente sabe que ela age como se fosse ministra da Fazenda e que Guido Mantegas, o titular da pasta, fez tudo o que ela manda e determina. Dilma não ouve ninguém. 

Se for reeleita, o que se pode esperar nos próximos quatro anos?

O que se espera é pragmatismo e diálogo com a realidade, em vez de diálogo com a ideologia. Dilma vai ter de assumir que vai ter de aumentar os juros, que vai ter de cortar despesas e que vai ter de olhar para a iniciativa privada, ou então não vejo hipótese da situação melhorar mantendo a aposta dos últimos quatro anos. O mercado financeiro, goste-se ou não, tem poder e o próximo governo vai ter de assumir este facto e de conviver com ele. 

Fala-se na possibilidade de Lula voltar em 2018. Faz sentido?

Sentido, faz. Mas quatro anos em política é muito tempo e não se podem ter grandes certezas, sobretudo quando se está a falar de alguém com 68 anos que superou recentemente um cancro. O regresso de Lula nunca esteve descartado até há bem pouco tempo. Acontece que, com a entrada de Marina para o lugar de Eduardo Campos, o PT percebeu, através de pesquisas, que se a candidata do PSB continuasse a subir, até ao ponto de ser impossível a reeleição de Dilma, também podia ser impossível a vitória de Lula. Perante isso, o partido não ia arriscar um património como Lula para disputar uma eleição que pode ser perdida. 

O que é que Marina Silva traz de novo a esta campanha e à política brasileira?

Marina teve 20% dos votos em 2010, sem ser conhecida, e quando ainda nem era candidata às eleições deste ano já somava 28% das intenções de voto nas sondagens. A sociedade brasileira está disponível para receber alguma coisa diferente, mesmo que não seja nova. Grande parte da população quer propostas e protagonistas diferentes daqueles que têm estado na primeira linha nos últimos 20 anos. O eleitorado está cansado da polarização PT/PSDB e quem não é de um destes dois partidos já não pode ouvir falar deles. O que acontece é que Marina, inteligente e auxiliada por pesquisas, percebeu que propondo o fim desta polarização podia conseguir bons resultados e ser eleita. 

O eleitor de Marina vai votar no aspecto simbólico (mudança) da sua candidatura ou nas propostas?

Esse é o grande problema. Há o risco da Marina ter um eleitor que simplesmente está cansado da polaridade PT/PSDB. Ou simplesmente um eleitor que quer moralidade e isso, por vezes, é pouco politizante. Ter um eleitor despolitizado é um problema sério, porque ele pode não assimilar o momento em que o seu candidato eleito é obrigado a fazer alianças. 

Marina vai precisar de maioria na Câmara e no Senado para governar e isso implica acordos com os partidos da polarização, como ela diz. A salvaguarda da sua credibilidade obriga-a a um esforço acrescido? 

Todo o governo precisa de maioria para governar. E perante as composições que ela tiver que fazer, como é que os eleitores e a imprensa vão reagir? Será que a imprensa vai dizer que ele inevitavelmente teve que reagir ou vai escrever ‘Marina cede’? Claro que é a última hipótese. Perante isso, ela vai ter um desafio muito delicado. Vai ter de conseguir acordos que lhe vão assegurar condições de governabilidade sem comprometer a sua reputação. 

Mas há aí outra questão: Marina só quer cumprir um mandato. É contra a reeleição. 

Esse é um grande erro que ela cometeu. Uma coisa é dizer que é contra a reeleição – vários candidatos estão a sinalizar isso – e outra é dizer que vai mandar uma proposta para o congresso a propor o fim da reeleição. Mas quem acaba com a reeleição é o Congresso. O que Marina disse é que não seria candidata, independentemente de uma decisão. Há quem diga que ela, ao admitir que não será candidata a novo mandato, está a sinalizar que não será um obstáculo ao regresso de Lula em 2018 e, assim, Lula não será tão agressivo com ela durante esta campanha. Mas, por um lado, não a vejo poupada nas críticas de Lula e, por outro, esta posição fecha a porta a acordos com outros partidos porque ninguém vai apoiar um governo ao qual fará oposição daqui a quatro anos. Ninguém abre mão do poder de graça. Marina precipitou-se e disse o que ainda nem sequer lhe estava a ser cobrado.  

Sem o apoio de outros partidos é possível um realinhamento partidário, como propõe Marina?

Não. Dilma e Marina querem uma reforma política, mas não disseram ainda como vão fazer isso. Ou seja, que instrumentos vão usar para renovar e arejar o sistema político brasileiro que hoje enfrenta uma série de problemas. As duas candidatas não dizem porque talvez não saibam. Além disso, o congresso que se vai eleger terá uma distribuição muito semelhante à que está ainda em funções. No caso de Dilma, a pergunta coloca-se: porque é que ela não fez esta reforma antes? Será que vai conseguir fazer no futuro, com uma base parlamentar do mesmo tipo

Marina Silva tem gerido bem o facto de ser evangélica?

O maior problema com que ela se tem deparado vem dos adversários. Eles estão apresentando este facto como um problema, quando na realidade as pesquisas mostram que o voto religioso não sofreu grandes alterações desde que Marina foi apresentada como candidata. Ou seja, a distribuição mantém-se: os católicos estão a votar mais em Dilma e não se registou uma transferência de voto para Marina quando ela entrou em jogo, segundo as sondagens. 

Os evangélicos estão a crescer na política brasileira e apresentam um candidato próprio. Marina poderá contar com o apoio dos deputados saídos das igrejas para governar?

Parece-me que os evangélicos, enquanto grupo político, tinham muito mais interesse em que o pastor Everaldo, do PSC, tivesse 10% dos votos, do que Marina Silva ser eleita. Com esta percentagem de votos, o PSC ia negociar e arrancar tudo o que quisesse de Dilma no segundo turno. Penso que o apoio dos evangélicos não é automático, porque este grupo tende a apresentar dossiês que Marina, por ser evangélica, não se pode envolver. 

Porque é que Marina Silva, de "cor/raça preta", segundo o boletim de candidatura entregue no Tribunal Superior Eleitoral, não faz bandeira do facto de ser negra?

Ela tem consciência de que o Brasil é um país multi-étnico. É interessante que o Obama, que é muito mais negro que ela, nunca levantou esta questão. Além disso, ela ia estreitar a sua base de apoio. Ia parar ao gueto. 

O fenómeno Marina Silva é igual ao fenómeno Lula da Silva?

Do ponto de vista das origens sociais e políticas, sim. Do ponto de vista eleitoral e de governo, vamos ter que esperar para ver. Mas penso que o Lula tinha características mais pragmáticas, enquanto a Marina tende ser mais dura nas negociações, por exemplo. O Lula era um sindicalista que se sentava com os patrões a negociar. A Marina era seringueira que protegia a floresta, abraçava as árvores enquanto dizia: ‘Se cortarem a árvore vão ter de me cortar também’. Há uma diferença muito grande entre os dois: um é da negociação e a outra é do empate. 

A denúncia de um novo escândalo na Petrobras não fez grande mossa na candidatura de Dilma, a avaliar pelas sondagens. Como se explica isso?

A questão da corrupção no Brasil já arrancou tudo o que podia arrancar dos eleitores do PT. Ou seja, os eleitores que são susceptíveis a esta questão já não votam PT há muito tempo. 

Se se confirmar a tendência das sondagens, o PSDB fica pela primeira vez fora do segundo turno. É culpa do candidato, Aécio Neves, ou do partido?

Numa primeira análise é culpa de Aécio Neves, que é líder do partido. Mas o PSDB está a pagar um preço muito alto por todos os erros que cometeu ao longo destes 12 anos na oposição, onde ficou paralisado porque acreditava que o Lula ia ser um desastre. E o Lula não foi o desastre que eles imaginaram. Até hoje o PSDB condena Lula por ter dado continuidade ao governo de FHC, tirando-o mérito. O que não deixa de ser anormal porque se Lula deu continuidade então é um mérito. Sem argumentos do ponto de vista da economia, resolveram também fazer críticas moralistas. Mas o primeiro 'mensalão' foi num governo PSDB. Portando, os tucanos pensam que os brasileiros já têm todos os seus problemas básicos resolvidos (comida, casa, saneamento básico) e que agora estão interessados em discutir acentuadamente a questão moral. Se fosse num país avançado, como Finlândia, Noruega ou Alemanha, isso seria um desastre. O Brasil ainda não chegou a este ponto. A miséria diminuiu mas ainda temos muita coisa para resolver. 

ricardo.rego@sol.pt