Ironias do destino no PS

António Costa começou com o pé direito o seu percurso como futuro líder do PS e candidato a primeiro-ministro: escolheu Ferro Rodrigues para líder parlamentar. De facto, não podia ter escolhido melhor entre as opções possíveis.

Ferro não fazia parte do pequeno conjunto de nomes pressentidos na imprensa para sucederem a Alberto Martins, mas provocou um efeito de surpresa por excelentes razões: apesar da sua rugosidade, que o impede de ser um talento político natural como António Costa, o antigo secretário-geral do PS é, incontestavelmente, a figura mais sólida e respeitada do actual grupo parlamentar socialista para chefiar a bancada e enfrentar Passos Coelho nos debates quinzenais.

Além disso, há alguma ironia nostálgica nesta troca de papéis à frente do PS: Costa foi o primeiro líder parlamentar do partido quando Ferro Rodrigues era secretário-geral e a dupla funcionava com notória complementaridade até Costa ter sido eleito deputado europeu e Ferro se afastar da chefia socialista (por um motivo quase absurdo, diga-se de passagem: a decisão do Presidente Jorge Sampaio em empossar Santana Lopes como primeiro-ministro quando Durão Barroso deixou o Governo para presidir à Comissão Europeia). 

Segunda ironia: ao abandono de Ferro poderia ter-se seguido a ascensão de Costa à liderança do partido, mas, como se sabe, o recém-eleito 'candidato a primeiro-ministro' rejeitava então peremptoriamente que algum dia viesse a sê-lo. Resultado: foi José Sócrates, que já conspirava nos bastidores para suceder a Ferro, quem acabaria por desempenhar esse papel, durante o consulado mais polémico e contestado de governação socialista.

Ironia suplementar: a presença de Ferro à frente da bancada do PS funciona como uma espécie de exorcismo do fantasma socrático que persegue António Costa. Embora Ferro não tivesse sido um adversário público e notório do último primeiro-ministro socialista, preferindo afastar-se da ribalta política, é flagrante o contraste entre a sua imagem humana de autenticidade e o perfil artificioso e autoritário de Sócrates.

Mas se a designação de Ferro Rodrigues representou uma estreia auspiciosa de António Costa no terreno das escolhas pessoais, o novo líder – embora ainda não formalmente consagrado – do PS tem pela frente um longo e árduo caminho para justificar a dimensão surpreendente da sua vitória nas primárias socialistas e ganhar a confiança do país nas próximas eleições legislativas.

Depois do claro favoritismo que lhe fora atribuído no início da campanha das primárias, Costa parecia ter perdido terreno para Seguro e comprometido esse seu favoritismo nos tristes debates televisivos em que os dois candidatos se neutralizaram num duelo fulanizado de retórica agressiva e vazia. A esse respeito, foi irónico ver alguns oráculos do regime a silenciarem as suas expectativas nas vésperas eleitorais, depois de terem antecipado o triunfo de Costa por números esmagadores no arranque da campanha.

Afinal, acabaram por ser mesmo números esmagadores que apanharam toda a gente de surpresa: Costa impôs-se triunfalmente, sem margem para quaisquer dúvidas, ainda por cima num escrutínio inovador e com uma surpreendente participação de militantes e simpatizantes. 

Mas as ironias prosseguem, com o feitiço a virar-se contra o feiticeiro. Seguro recorrera ao expediente ardiloso das primárias para adiar o confronto com Costa e apanhar o adversário nas malhas de uma rede que lhe seria supostamente desfavorável. Verificou-se exactamente o contrário e, apesar do vício original, o ritual das primárias veio para ficar como uma experiência de abertura democrática dos partidos tradicionais para além das fronteiras dos seus aparelhos.

O aparelhismo de Seguro foi claramente derrotado (dentro até do próprio aparelho), mas as sombras do clientelismo, além dos fantasmas do passado socrático, continuam a perseguir António Costa. Sendo, reconhecidamente, um dos mais talentosos políticos portugueses, é, talvez por isso mesmo, daqueles que mais atraem os jogos de influências, como se viu na dança de estrelas e notáveis que marcaram alguns momentos mais característicos da sua campanha. 
Manobrador e maquiavélico, Costa abusa da sua imagem e do seu carisma, fugindo a assumir compromissos e refugiando-se no secretismo a que só um círculo restrito de eleitos terá acesso enquanto o 'bom povo' fica a assistir. 

A amplitude da sua vitória compromete-o, porém, mais do que ele porventura desejaria. E obriga-o a superar-se a si mesmo para não ficar na fotografia de uma insustentável leveza política, aqui referida na crónica anterior. Esta será, talvez, a última ironia com que António Costa terá de confrontar-se para merecer o destino a que, finalmente, se candidatou.