Os jornalistas são pessoas iguais às outras mas que têm por função ver o que está mal, detectar o que foi mal feito, explorar o que está errado, identificar o que pode ser alvo de suspeitas. Acusam-se frequentemente os jornais de nunca falarem do que está bem – e é verdade. Mas é preciso ver que aquilo que está bem não interessa aos jornalistas, porque não é susceptível de polémica. Por isso mesmo se diz que a imprensa é um ‘contrapoder’. Os jornalistas são, por dever de ofício, pessoas do ‘contra’. Que se realizam a criticar e que, ao contrário das regras do Direito – segundo as quais todos são inocentes até prova em contrário –, consideram que todos são suspeitos até provarem a sua inocência.
Neste aspecto, sou muito pouco jornalista. Gosto mais de elogiar do que de criticar. Odeio dizer mal ‘porque sim’. E, quando faço uma crítica, esforço-me por apresentar uma solução. Tenho necessidade de explicar: “Fulano fez isto assim mas deveria ter feito assado, cozido ou frito”. Dizer mal é demasiado fácil – o que é difícil é apresentar soluções.
Simultaneamente, não partilho de alguns vícios comuns a muitos profissionais da imprensa, como frequentar tertúlias nocturnas, fazer vida de boémio ou ter reacções corporativistas – defendendo os jornalistas mesmo quando não têm razão.
Conservo uma distância em relação à imprensa. Fui dos primeiros a denunciar os julgamentos mediáticos, a que chamei os ‘novos julgamentos populares’, ou seja, as pessoas serem condenadas nos media antes de serem julgadas em tribunal. Até porque essas sentenças mediáticas não têm recurso. Uma pessoa que tenha o azar de ser condenada na arena mediática nunca mais se livrará do ónus da culpa, mesmo que venha a ser absolvida em tribunal. Ninguém diz que os jornalistas erraram quando a culpabilizaram publicamente – diz-se é que os juízes não tiveram coragem para a condenar (ou que a investigação não teve competência para arranjar provas).
No estado actual da imprensa, em que há muita concorrência e as vendas dos jornais e revistas estão em queda, a tentação pelo sensacionalismo é enorme. Especula-se cada vez mais. Fazem-se títulos cada vez mais enganadores. Exploram-se até à exaustão certos acontecimentos, sobretudo os ‘escândalos’ e as desgraças. Tudo isto é conhecido, mas convém não exagerar.
Dois acontecimentos terríveis de grande impacto mediático ocorreram nos últimos tempos: a tragédia da praia do Meco, em que morreram seis estudantes, e a morte do filho de Judite Sousa numa piscina.
Ora, quer num caso quer noutro, a exploração jornalística tem ultrapassado os limites. No caso do filho de Judite Sousa, tentaram de início levantar-se dúvidas (ou mesmo suspeitas) sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente, explorando uma linha que dera frutos no Meco. Só que os pais não alimentaram as especulações e os media passaram apenas à exploração da dor.
Conheço Judite Sousa há bastante tempo, embora nunca tenhamos sido próximos. Convidou-me (em duas ocasiões) para a sua Grande Entrevista, um programa que tinha na RTP, convites a que correspondi com gosto, apesar da minha conhecida aversão ao pequeno ecrã. Também participei com ela em entrevistas televisivas. É uma jornalista séria, aplicada, independente e com presença, que prepara bem o seu trabalho. Estas qualidades fizeram dela a principal entrevistadora da TV portuguesa, sucedendo a Maria Elisa e Margarida Marante. Não teve grande sorte com os maridos, mas do primeiro teve um filho que era a sua âncora, o seu futuro, a sua razão de vida. A morte dele foi um acontecimento brutal. É aquela situação pela qual nenhum pai quer passar. E ainda mais no seu caso, por ser filho único e viver sozinha.
Ora, um desgosto desta dimensão deve suscitar respeito. Explorar isso para vender jornais ou revistas é inadmissível.
Outro tema constrangedor é a tragédia do Meco. Percebe-se o terrível desgosto dos pais, a sua revolta e a necessidade de encontrar culpados. Sempre que acontece algo de mau, o ser humano precisa de arranjar responsáveis, de encontrar alguém contra quem possa lutar, que possa culpabilizar, em quem possa descarregar a dor.
Mas uma coisa é a dor dos pais – e outra, bem diferente, é o aproveitamento dessa dor. Ora os jornais, as rádios e as televisões têm explorado o tema até à exaustão. Lançaram-se todas as suspeitas possíveis e imaginárias. Afirmou-se que os jovens que morreram haviam sido alvo de praxes terríveis, que essas praxes tinham estado na origem da tragédia e que o culpado por tudo era o ‘Dux’, João Miguel Gouveia, o único sobrevivente da tragédia. Nos horários nobres das televisões viam-se todos os dias filmes e fotografias de praxes estudantis, alimentando a ira da opinião pública.
A campanha que se fez contra o sobrevivente ultrapassou todos os limites do razoável e assumiu contornos de um linchamento em público. Como se as vítimas fossem crianças que o educador tivesse levado irresponsavelmente para a beira-mar. Mas, afinal, não eram todos adultos e responsáveis?
Quando saiu o despacho de arquivamento, que explica o acidente de forma simples e clara – com grande probabilidade, uma onda inesperada surpreendeu os jovens e levou-os –, as acusações não acalmaram. A Polícia estava errada, os jornalistas é que estavam certos. Intensificaram-se as suspeitas contra o ‘Dux’, quase transformadas em certezas. Duvidou-se que tivesse sinais de pré-afogamento, como dizia o relatório oficial, mesmo depois de vários socorristas e pessoal do hospital o terem confirmado. Valeu tudo para alimentar as suspeitas e as mentes doentias desejosas de sangue.
Ora, a explicação para a tragédia não tem nada de transcendente. Ainda nas últimas semanas várias pessoas que passeavam à beira-mar ou molhavam os pés na praia – na Nazaré, em Vagos e na Póvoa do Varzim – foram surpreendidas por ondas e perderam a vida. Mas as pessoas não se convencem. Porque só acreditam naquilo que vai ao encontro do que querem que tenha acontecido, para poder haver um culpado.
E, se compreendo que os pais não se conformem e continuem a alimentar um sentimento de revolta, os jornalistas deviam ser mais rigorosos e não se dedicarem a explorar a dor.