Como todas as ficções de José Saramago, 'Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas' nasceu de uma ideia solta. A 15 de Agosto de 2009, o escritor anota no diário a referência de André Malraux, no romance 'A Esperança', a uma bomba boicotada por um português na guerra civil de Espanha. Dias depois, corrige-se. Malraux referira, sim, o fuzilamento de uns operários milaneses por sabotagem de obuses. Aí está o “gancho”, também para uma pergunta antiga: por que razão nunca houve greves na indústria de armamento? A história tem de ser “humana”. Nasce Artur Paz Semedo, contabilista de uma secção fabril de armas ligeiras e o seu dilema moral: optar entre uma histérica paixão bélica ou o amor pela sua mulher, Felícia, pacifista ferrenha. Do final da história, Saramago sabe só que “terminará com um sonoro 'Vai à merda', proferido por ela. Um remate exemplar”.
Durante o último ano de vida, Saramago burilou os três primeiros capítulos com a urgência de ainda dizer algo. Pelo contrário, calara-se, porque “não tinha nada para dizer”, entre os 25 anos (a estreia, com Terra do Pecado, romance falhado) e os 55 anos de idade (o regresso, com Manual de Pintura e Caligrafia). Depois, até aos 87 anos, criou uma obra merecedora de Nobel da Literatura.
Surpreende, até à última frase finalizada, o fôlego inventivo de uma obra que não conheceu senão maturidade e coerência. Durante 30 anos, em silêncio, Saramago forjou um estilo ímpar de pontuação, cadência frásica e encadeamento narrativo, graças ao treino obstinado da linguagem e ao estudo da literatura. Quando de facto começou a criar, quis que lêssemos as palavras escritas como se fossem ditas.
Quem as dirá, até ao fim, é um narrador obscuro que, no presente ficcional, questiona o passado (os arquivos subterrâneos), ao ouvido do leitor (“a quem isto possa interessar”, lê-se). Os enredos são movidos por uma dinâmica ao mesmo tempo histórica e existencial. Servem a denúncia permanente de questões éticas, enquadrada por uma firme moldura ideológica e humanista. O escritor quer dizer coisas concretas e cria, como bem os define Fernando Gómez Aguilera, “uma espécie de ensaios com personagens”.
O que ficou de 'Alabardas', provável primeira metade de uma novela, confirma toda a bibliografia de Saramago. No entanto, é outra coisa. Iluminam-no um tom directo, uma ironia e uma leveza que parecem mais riso de jovem do que engenho de veterano. A história de Artur Semedo funciona como parábola, enquanto ilustração moral do caso de um sujeito que “é um interessante exemplo das contradições entre o querer e o poder”. Mas é paródia, sustentada por uma coloquialidade sofisticada e por personagens-tipo, com carácter simbólico (“o administrador é um homem de quarenta e dois anos, bem-parecido, moreno de sol e de desportos ao ar livre, vela, golfe, ténis, enfim, vida de country and sea”; “o chefe é gordo e calvo, o ajudante tem o cabelo todo e é magro como o jejum”).
Não por acaso, o título final surgiu do que o escritor escolhera primeiro para a epígrafe: “Alabardas, alabardas,/ Espingardas, espingardas”, da tragicomédia Exortação das Almas, de Gil Vicente. Saramago despede-se, castigando os costumes, mas com uma gargalhada que ecoa no tempo.
Livro:
'Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas'
José Saramago
Porto Editora 15,50€