Clark mostra como os dirigentes europeus de há um século se deixaram arrastar, sem se darem conta das consequências dos seus actos irreflectidos e suicidas, para o conflito mais devastador da história europeia, apenas superado, trinta anos depois, pela II Guerra Mundial (cujas origens remontam, porém, às tremendas convulsões provocadas pelo morticínio de 1914-18).
Apesar de algumas aparentes contradições na descrição do enredo dos acontecimentos que conduziram à catástrofe, a metáfora do sonambulismo no comportamento dos dirigentes europeus revela-se inteiramente apropriada: não há um culpado solitário mas uma conjugação de culpas múltiplas que se encaixam umas nas outras como num puzzle construído por uma entidade invisível e maléfica.
O livro de Clark tem sido evocado a propósito da recente crise na Ucrânia e dos riscos de um confronto armado entre a Rússia e o Ocidente. No entanto, o alcance contemporâneo de Os Sonâmbulos é ainda mais vasto e assustador quando observamos o mapa dos conflitos internacionais, nomeadamente desde o 11 de Setembro e os efeitos perversos da intervenção americana no Iraque, culminando no actual surto do fanatismo islâmico que ninguém foi capaz de prever – e prevenir.
Mas o estado de sonambulismo descrito por Clark em relação a 1914 não se reduz hoje à esfera dos comportamentos que proporcionam subrepticiamente – e irresistivelmente – o desencadear das guerras. Veja-se, por exemplo, o que vem acontecendo na União Europeia ou até, a uma escala bem mais modesta mas não menos reveladora, em Portugal. Não estaremos perante outras formas de sonambulismo – embora pacífico, digamos – que conduzem a situações críticas de ruptura financeira, económica e social?
Foi isso, aliás, que esteve também na raiz do grande terramoto financeiro de 2008, com a falência seminal do Lehman Brothers, propagando-se um pouco por todo o mundo até atingir o seu epicentro na Europa. Enfrentamos agora uma aguda crise de crescimento e deflação prolongada para a qual não se vislumbra ainda uma saída, apesar dos alertas (e remédios) lançados por Mario Draghi, presidente do BCE, ou alguns dirigentes do FMI (organismo que é, de resto, um caso agudo de sonambulismo e esquizofrenia, com as suas recomendações de sinal contrário sobre a austeridade e o crescimento).
Será compatível o combate à recessão e à deflação com o dogma integrista dos 3% do défice do PIB que penaliza especialmente os países mais afectados pela austeridade e pelo agravamento imparável da dívida externa, como acontece com Portugal? Haverá sonâmbulo mais consumado do que o alemão Schäuble, ministro das Finanças de um país cujo fundamentalismo doutrinário não o impediu de ser já atingido pelo agudizar da crise europeia?
Ao justificar a meta do défice de 2,7% do PIB no Orçamento do Estado de 2015, em vez dos 2,5% combinados com a troika, Passos Coelho manifestou-se contra o “fanatismo orçamental” de Bruxelas – que insiste, além disso, numa dose renovada de austeridade. Eis uma interessante reconversão pré-eleitoral de duas décimas por parte de quem não só parecera acomodar-se a esse fanatismo como se propusera ir ainda para além da troika.
O sonambulismo tornou-se uma espécie de estado vegetativo dos dois parceiros da coligação, constrangidos a manter a sobretaxa do IRS e condicionando a sua descida em 2016 a um aumento mágico da receita fiscal. Um expediente eleitoralista pouco convincente – e muito questionável no plano fiscal e constitucional – mas que mostra o colete-de-forças em que se debate o Governo depois de ter exercitado até ao limite a postura de 'bom aluno' europeu.
Mais ou menos convictos (o PSD) ou relutantes (o CDS, grande derrotado na baixa dos impostos), os aliados da maioria perseguiram o objectivo impossível do programa da troika – ou só possível aos olhos dos sonâmbulos de Lisboa e Bruxelas. Agora, nem os 4% do défice de 2014 estão seguros. Os nossos vigilantes europeus já prevêem a hipótese sombria de 7,5% por causa do buraco do BES.
Por causa do BES – e não só – caiu entretanto a mítica PT, arrastando o quase eterno sobrevivente Granadeiro e o genial Bava. Aliás, desde Sócrates a Passos, passando pelo dono-disto-tudo Ricardo Salgado, entre o despesismo iluminado e a austeridade redentora, entre capitães da banca e da indústria ou sargentos políticos, o que vemos é um pequeno exército de sonâmbulos perdidos nos seus enredos fatais.