Ficou sete anos sem gravar um disco de inéditos e regressou este ano logo com um duplo.
As pessoas perguntavam-me ‘porque não poupas as músicas?’. As músicas são para sair, para serem tocadas. Só não lanço músicas que não estão prontas ou que não me sinto confortável com elas. Não estou preocupado se a editora concorda ou não. Um disco tem de ser a cara do artista, não pode ser a cara da editora.
O espectáculo que traz ao Coliseu dos Recreios é baseado nestes dois discos?
Sim, a base vão ser os discos. Mas como não faço muitos espectáculos em Portugal, músicas de outros projectos vão ser chamadas. Se não acho que metade da sala vem atrás de mim.
Já tem temas incontornáveis?
Sim, 30% do espectáculo são temas que tenho mesmo de cantar, que marcaram muito a minha carreira e a vida de certas pessoas que estão aqui na Diáspora e nunca me viram ao vivo. Mas não é um espectáculo só para moçambicanos.
Como vai ser o concerto?
As pessoas dizem-me que transporto para palco muita energia e alegria. Logicamente que se for uma música triste carrego essa emoção para dentro da música, mas normalmente o que apresento é muita alegria, cor, vibração. É um espectáculo que não pára, quase não há espaço para respirar. Inspira-se e, depois, só se expira quando o espectáculo acaba.
Termina o concerto exausto?
Já tenho o espectáculo tão incorporado que podia fazer mais uma hora. O cansaço vem no dia seguinte
A nível musical como vai unir dois discos, diferentes entre si?
São diferentes, mas há um ponto de encontro entre eles. A sonoridade no palco vai ser a uniformização dos dois trabalhos. O Pedro Jóia vai tocar quatro músicas e vai ajudar a transportar-nos dos “Sete Pecados…” para “Boleia Africana”. No “Sete Pecados…” há influências de sonoridades que Moçambique bebeu dos seus vizinhos. Há mil anos não havia a divisão que foi feita depois de o Pacto de Berlim. O povo do Zimbabué era o de Moçambique, logo a música sofreu essas influências. Uma vez ouvi um grupo da Ucrânia e era só uma questão de trocar a língua pelo chagano e aquilo era do sul de Moçambique. Os ritmos, a instrumentação, as melodias era tudo igual. Por isso, quem não nos diz que, há mil anos, não foi um africano para a Ucrânia. Não importa a condição em que saiu, se foi escravo ou conquistador, mas levou alguma coisa para lá. No século XVII, houve um moçambicano que viajou para o Japão e, a partir dele, há uma linhagem de japoneses com sangue negro. As músicas que ouvimos agora e que nos parecem semelhantes não são por acaso.
Estudar estas ligações é uma preocupação?
Não faço coisas empíricas. Estudo-as. Há coisas que saem naturalmente, mas mesmo essas têm muito a ver com a vivência. São melodias que já ouvi, que já bebi, que ficaram guardadas no subconsciente. Podem sair por acaso, mas não estão lá por acaso.
Daí o título “Boleia Africana”, para mostrar que o mundo bebeu muito de África?
Tem como núcleo principal a colonização da Península Ibérica pelos mouros. Portugal e Espanha têm uma influência fortíssima dos mouros de pele escura que habitavam a faixa de Marrocos e do Senegal, que eram os bérberes. Ao passarem para o outro lado do canal trouxeram as suas vivências e o vírus ficou. Basta andar pelas ruas e vê-se a cor da pele das pessoas, a fisionomia, a mistura africana muito grande que há em Portugal. E não estou a falar das misturas recentes, mas sim de uma coisa muito mais enraizada e que é impossível fugir. Hoje fala-se tanto de globalização, mas é uma globalização cosmética porque começou há muitos séculos. Através destes dois discos quero criar esse debate.
Também é fruto dessa mestiçagem?
Completamente. Tenho sangue português, goês e moçambicano e o meu sangue influencia muito o meu pensamento. É cada vez mais evidente de que somos todos crioulos.
Porque quis gravar “Boleia Africana” em Lisboa?
Queria que os músicos europeus fizessem uma leitura própria das músicas. Queria sair do cliché ‘o branco não toca música de preto’. Não pedi para tocarem à minha maneira, mas sim o que sentiam. Há um tema com letra do José Eduardo Agualusa que ficou completamente diferente do original em termos rítmicos e harmónicos. Era isso que queria, a perspectiva de quem a tocou. E no espectáculo também vamos ter esse contrato. O Pedro Jóia, por exemplo, vai levar a sua guitarra portuguesa e tocar com o Sissoko que toca kora, um instrumento puramente africano.
Actualmente a música angolana tem imensa expressão em Portugal, mas a moçambicana não. Percebe porquê?
Acho que o grande interesse económico entre Portugal e Angola afecta tudo, até a música. Quando há uma telenovela portuguesa que explora a rota com Luanda, a cultura daquele país começa a entrar. Se houvesse uma em que 75% do capital fosse moçambicano, tivesse uma cena comigo a cantar e no mesmo episódio se dissesse 30 vezes “maningue”, isso entrava. Claro que gostava que a minha música tivesse mais expressão cá, e vou lutar para que conquiste o espaço que merece, mas não me vou prostituir por isso. Não vou imitar nada e ir em modas. Tenho a minha identidade e isso é que é globalização para mim: tocar a minha música e não a do outro.