Uma palmada pode ser crime

Uma educadora de uma creche foi despedida há uns tempos por, segundo o que consta no processo, ter dado “uma palmadinha com as costas da mão” na cara de uma criança que não queria comer o pão. 

O assunto foi a julgamento, o tribunal de primeira instância deu razão à educadora – mas a Relação e o Supremo Tribunal acharam o contrário, considerando o comportamento da educadora inadmissível, e aprovaram o seu despedimento.

Este assunto é de extrema importância. Há 50 anos considerava-se normal os pais darem umas palmadas aos filhos e os professores baterem nos alunos. 

Eu fui um privilegiado, pois não me lembro de os meus pais me baterem. Mas é certo que a minha família era ‘especial’, pois o meu pai foi viver para França quando eu tinha 10 anos, ficando nós (eu e dois irmãos) a viver com a minha mãe, que era professora e passava o dia fora de casa. Nas famílias ‘normais’, um dos cônjuges era mais severo e castigava os filhos quando se portavam mal, o outro era mais brando e reconfortava-os. Em minha casa não existia esse ‘equilíbrio’.

Na escola primária, as reguadas eram o pão nosso de cada dia. Frequentei a Escola Primária de Belém – a escola oficial –, onde havia miúdos de todas as origens sociais, e era normal as professoras darem reguadas aos miúdos quando não faziam os trabalhos de casa ou não estudavam as lições. Mas só uma vez fui castigado. Por causa das equivalências. Nunca (até hoje) soube mais do que a primeira equivalência: “O metro cúbico equivale ao quilolitro, à tonelada e ao estere”, recitei eu na ponta da língua. Mas quando passei à segunda equivalência, engasguei-me: “O decímetro cúbico, o decímetro cúbico…”. “Então o decímetro cúbico equivale a quê?”, insistiu a professora, em tom compreensivo. “O decímetro cúbico equivale a… não sei”. 

Vi a decepção estampada na cara da professora primária. Chamava-se D. Inácia e era quase cega. Como os outros miúdos tinham apanhado por não saberem as equivalências, eu não podia escapar, embora fosse bom aluno. Estendi o braço, ela apalpou o ar à procura da minha mão, pegou nela e deu-me uma reguada. Fixei-a nessa altura nos olhos vazios: tinha-os marejados de água. Percebi que sofria tanto ou mais do que eu.

Nunca mais esqueci este episódio. Mas não o lamento. Havia colegas meus que eram uns autênticos mártires, levavam dez reguadas e mais seguidas, saíam de lá com a mão vermelha, mas não choravam. Aguentavam. Também falávamos entre nós das terríveis ‘meninas de cinco olhos’ – umas réguas com a parte final redonda e perfurada, com cinco buracos, para não fazer resistência ao ar e bater na mão com mais força. Mas na nossa escola nunca apareceram essas ‘meninas’.

Depois de apanharem das professoras, colegas meus ainda levavam tareias monumentais dos pais, às vezes com o cinto. Mas em nossa casa nunca soubemos o que isso era. É verdade que o meu irmão mais novo, o Pedro, sofreu um pouco mais do que eu e o mais velho. Nunca apanhou com o cinto, bem entendido, mas nós castigávamo-lo de vez em quando com palmadas na mão, pois éramos muito mais velhos.

O Pedro tinha 10 anos de diferença de mim e 14 do mais velho – pelo que nós funcionávamos como seus educadores. Na prática, ele tinha nos irmãos dois ‘pais’. Mas, quando o castigávamos, explicávamos-lhe sempre o porquê do castigo. Anunciávamos a ‘pena’, ele estendia o braço com a palma da mão aberta e nós dávamos-lhe umas palmadas com a nossa mão. 

Não me lembro de o ouvir protestar ou contestar um desses castigos. Embora não gostando (quem gosta de apanhar?), pelo menos percebia que não o castigávamos gratuitamente nem por prazer. O castigo estabelecia a fronteira entre o que era e não era aceitável.

É óbvio que a educação assente nos castigos corporais é imprópria e inadmissível. Já me revoltei contra situações a que assisti. Mesmo nos animais a regra deve ser ‘não bater’. 

Deve educar-se pela persuasão e pelo exemplo – não pela repressão. Até porque, em certas crianças mais sensíveis, o castigo corporal pode gerar revolta, transformando-as em pessoas revoltadas contra o mundo. E noutros casos pode provocar cobardia: as crianças deixam de fazer certas coisas não por acharem que são erradas mas apenas por medo de apanharem. Acobardam-se – aprendendo a fazer as malfeitorias ‘pela calada’. 

Porém, neste aspecto – como noutros – passámos do 8 ao 80. E aí é que reside o problema. Se é abominável uma educação assente na repressão, é ridículo diabolizar uma palmada na mão ou no rabo (a palmada na cara é mais humilhante). E não faz qualquer sentido proibir os pais ou os educadores (que durante uma boa parte do dia substituem os pais) de tocarem com um dedo nos meninos. 

Até porque os pais e os educadores são pessoas, não são robôs, têm os seus estados de alma – não se lhes podendo exigir sempre a mesma paciência e disponibilidade. Poder-se-á dizer que as crianças não têm culpa nenhuma disso e devem ser preservadas dos aborrecimentos dos adultos. Em teoria, é verdade. Mas nós não vivemos num mundo ideal – vivemos no mundo real, com as suas virtudes e defeitos, e as crianças devem habituar-se a viver nesse mundo, sem grandes dramas mas também sem artificialismos, como se vivessem numa redoma. 

É preciso condenar severamente os maus-tratos – mas despedir uma educadora (que ainda por cima parecia ser dedicada à função) por dar uma palmadinha a um menino que não queria comer, é um manifesto exagero. É uma decisão totalmente destituída de bom senso. Não faz sentido estragar a vida a uma pessoa por uma palmada. 

Neste campo como noutros – repito –, fomos do 8 ao 80. Fomos da educação à correada e à palmatoada a uma educação obediente à cartilha do politicamente correcto mas desfasada da realidade do quotidiano. Estranhamente, os juízes tomam cada vez mais decisões com base numa realidade que não existe.

jas@sol.pt