KPMG cedeu a Ricardo Salgado

Ricardo Salgado e o presidente da auditora KPMG, Sikander Sattar, estiveram no início do ano em intensas negociações sobre a forma de reflectir nas contas do Grupo Espírito Santo (GES) o gigantesco buraco financeiro que já se adivinhava na altura. Segundo as gravações das reuniões do Conselho Superior a que o SOL teve acesso, a…

A questão estava relacionada com o registo contabilístico do papel comercial do GES vendido aos balcões do BES. O reembolso destes investimentos dos clientes teria de ser provisionado através de uma almofada financeira e implicaria um prejuízo adicional nas contas do BES apresentadas em Fevereiro, segundo a proposta inicial da KPMG. Mas a consultora recuou, nas negociações com Salgado, aceitando que o 'buraco' financeiro fosse apenas imputado à Espírito Santo Financial Group (ESFG), que só apresentou contas mais de dois meses depois.

Onde colocar a imparidade?

A origem do problema remonta ao final de 2013, um período generoso em auditorias. Nesta altura, é descoberto o endividamento excessivo e as dificuldades financeiras da Espírito Santo International (ESI). A Price waterhouse Coopers (PwC) estava a avaliar a carteira de crédito dos principais bancos portugueses, por indicação do BdP e do Banco Central Europeu, e detecta os primeiros problemas na ESI, que poderia não ter capacidade de pagar as suas dívidas.

O governador Carlos Costa forçou então uma auditoria adicional, apenas para avaliar a ESI e de que forma poderia contaminar o banco. Salgado escolheu a auditora histórica do BES e da ESFG, a KPMG, e o regulador aceitou.

Em Janeiro, aparecem os primeiros resultados. “Começamos a ter uma ideia sobre o que se passa potencialmente com a imparidade que nos vai ser imposta. O Sikander Sattar tinha proposto que fosse toda em cima do BES – ficaria um respaldo garantido pela solidez dos rácios do banco. Nós achámos, numa primeira análise, muito interessante. Mas à medida que fomos pensando no assunto… Claro que isto é um problema moral terrível em cima do grupo, porque esta imparidade resulta fundamentalmente do risco reputacional do papel comercial”, contou Ricardo Salgado aos familiares, numa reunião a 30 de Janeiro.

As primeiras contas indicavam que seria necessário registar uma imparidade de mil milhões de euros, embora o montante final não estivesse fechado. Mas fosse qual fosse o valor, seria sempre um problema bicudo. O BES apresentaria um prejuízo astronómico em 2013 e teria provavelmente de fazer de imediato um aumento de capital para cumprir as normas europeias.

“Fomos evoluindo no pensamento e às tantas ficou claro que era coisa desequilibrada, porque o banco tinha distribuído o papel, à confiança – papel que pertencia a uma empresa do grupo. Propusemos uma hipótese de trabalho que era 550 milhões no banco e 450 na ESFG”, resume Salgado. Só que esta solução enfrentou uma resistência de peso: os parceiros históricos da família, os franceses do CA, recusavam assumir perdas relacionadas com o GES e ameaçavam quebrar a parceria de décadas.

Salgado conta que já fora a Paris, conversar com Xavier Musca, administrador do CA, que ficou “em alvoroço”: “'A KPMG não pode fazer a provisão no BES. O Crédit Agricole não aceitará em nenhuma circunstância ser penalizado por uma empresa do GES. Demarca-se imediatamente da parceria, passa para o lado dos minoritários, vai pôr um processo à administração do banco, aos auditores, ao Banco de Portugal'. Uma agressividade jamais vista num parceiro de 30 anos que regularmente ganhou dinheiro com os investimentos que fez connosco”.

A solução, portanto, teria de ser outra: o prejuízo não podia ser imputado ao BES, apenas ao grupo. Mas essa solução não era a que tinham sugerido originalmente os auditores, pelo que Salgado tem de usar o seu poder de persuasão: “Vocês devem imaginar o choque e a situação que tivemos nestes dias. Fui ao BdP, a uma audiência com o sr. governador, e explicámos esta situação”.

Tudo na ESFG

A diplomacia é posta em marcha. Salgado conta então como o BES e os auditores trabalharam em conjunto para que a provisão fosse feita de forma a salvaguardar as contas do banco, passando todos os prejuízos para a ESFG. “Está a haver uma conversa entre a KPMG e a PwC e a nossa gente, que se tem batido de forma extraordinária na defesa dos nossos interesses. E estamos a chegar a uma situação em que não sabemos o montante da imparidade, mas neste momento foi reduzido – pode ser de 600 a 800 milhões de euros. Toda ela em cima da Financial, para evitar uma ruptura com o parceiro e uma crise horrorosa para o grupo. Só na segunda-feira vamos ter a certeza do que vai acontecer”.

A história mostra que Salgado conseguiu levar a sua intenção em diante. Em Fevereiro, o BES apresentaria um prejuízo de 518 milhões de euros relativo a 2013: não tinha qualquer provisão para o papel comercial, nem fazia qualquer referência a problemas com a dívida colocada junto de clientes de retalho. Essa 'novidade' só foi conhecida mais de um mês depois, quando a ESFG, em comunicado, revela que irá fazer uma provisão excepcional de 700 milhões de euros para esse efeito. E só no final de Abril é revelado o impacto pleno do problema do papel comercial nas contas do grupo: um prejuízo sem precedentes de 864 milhões de euros na ESFG, devido à provisão excepcional.

Auditoras debaixo de fogo

Pelos relatos do Conselho Superior do GES, o desenho desta solução foi feito em estreito diálogo com a KPMG. É normal que o trabalho dos auditores implique uma negociação constante com os auditados, mas há passagens em que Salgado assume a sua preferência por determinadas auditoras, em detrimento de outras.

No Conselho Superior de 9 de Dezembro, discute-se uma nova ronda de auditorias que iriam ocorrer a mando do BCE e dos testes de stresse na Europa, denominada Asset Quality Review (AQR). “Sabemos já que a PwC não concorreu. Quem está é a KPMG, a Delloite e a Ernst & Young. A KPMG diz que o BdP não a vai autorizar a fazer a auditoria outra vez ao BES via clientes. Ficam duas: a Deloitte (que não nos interessa nada porque é auditora do BPI e do BdP e tem estado sempre contra nós) e a Ernst &Young. Temos de trabalhar para que o nosso auditor no AQR seja a Ernst. É um trabalho de sapa que vai ser preciso fazer”.

O papel das auditoras na crise do BES é um dos pontos que mais debate têm gerado, até pelo conflito de interesses que esta actividade encerra – os bancos auditados são clientes das auditoras e pagam por esse serviço.

Depois do resgate do BES, em Agosto, a KPMG e o BdP trocaram acusações públicas sobre a data em que o regulador foi alertado para as perdas adicionais nos dias que antecederam a medida de resolução.

joao.madeira@sol.pt