O governador do Banco de Portugal (BdP) marcou o arranque dos trabalhos e foi preparado para as questões. Carlos Costa entregou aos deputados vários documentos técnicos onde justifica as opções tomadas nos últimos meses. O SOL teve acesso aos documentos e confrontou-os com as respostas aos deputados. Dentro de alguns meses e mais 115 audições, a comissão vai decidir se as explicações são válidas.
Porque não foi afastado Salgado?
O BdP detectou os primeiros indícios de irregularidades na Espírito Santo International nos últimos meses de 2013, mas Ricardo Salgado saiu do BES apenas em Julho de 2014. Deixou para trás uma série de práticas suspeitas que agravaram os prejuízos do banco e precipitaram a acção do BdP.
Grande parte do debate na comissão centra-se nos motivos que impediram o regulador de retirar a idoneidade do gestor, afastando-o das suas funções mais cedo. Carlos Costa argumentou que a jurisprudência dos tribunais superiores limitava a sua acção neste domínio: impunha que a perda de idoneidade só pudesse ser decretada se houvesse condenações por crimes de mercado tipificados na legislação, como abuso de confiança, roubo, burla ou extorsão. Salgado não está condenado por nenhum crime. “O dever só é exequível se acompanhado de poder”, assumiu o governador.
E o afastamento foi dificultado não apenas pela legislação da actividade bancária, como pela Constituição. Uma das revelações contidas nos documentos entregues à comissão refere-se aos pareceres usados pelo BES para contestar um eventual afastamento de Salgado. Os juristas Vieira de Andrade, Pedro da Maia e Calvão da Silva argumentaram que a inibição de funções seria “condicionador e limitador” de duas liberdades fundamentais na Constituição: a liberdade de escolha de profissão e a liberdade de iniciativa económica e a liberdade de empresa. O regulador entende que o seu campo de actuação seria “nulo ou muito limitado”, decidindo não agir através desta figura. “Se pudesse, tirava a idoneidade a Ricardo Salgado”. Mas não pôde.
O vice-governador do BdP, Pedro Duarte Neves, reconheceu que o BdP só conseguiu pressionar e afastar Salgado através da “persuasão moral”. O banqueiro aguardava a autorização do regulador para exercer funções em quatro filiais do grupo Espírito Santo – Banco Best, BESI, ESAF e Espírito Santo Ventures. “O Banco de Portugal adiou os registos e criou condições para Ricardo Salgado renunciar”, explicou.
O resgate era a única solução?
Formalmente, o BES foi alvo de uma resolução, uma figura jurídica que separou os activos bons do Novo Banco dos activos problemáticos que ficaram no BES. A nacionalização e a capitalização com recurso a uma ajuda pública são apontadas como alternativas à solução adoptada, mas teriam implicações complexas, argumenta o BdP. A legislação impõe que injecção de capitais públicos em bancos seja precedida da apresentação de um plano de reestruturação pormenorizado e da sua aprovação pela Comissão Europeia. “Esta solução carece de algum tempo para ser eficazmente implementada”, indicam as notas técnicas do BdP enviadas aos deputados. Com o banco prestes a cessar pagamentos após a apresentação de prejuízos recorde e a decisão do BCE de ‘fechar a torneira’ do financiamento, tempo era um recurso escasso. Na comissão, o governador do BdP insistiu várias vezes: “A resolução era única medida exequível em tempo útil”. A ministra das Finanças admitiu que a decisão do BCE “retirou tempo para que outras soluções fossem consideradas”. “Nunca apreciei e muito menos aceitei ou rejeitei uma solução de recapitalização pública”, garantiu.
Há quem aponte a possibilidade de nacionalizar o banco, mas haveria mais riscos. A ministra garantiu que “o Governo não estaria disponível para avançar para uma nacionalização”. Esse cenário seria uma “bomba atómica”, em que o Estado ficaria responsável pelos prejuízos dos activos problemáticos, tal como no BPN. As notas técnicas do BdP identificam outros perigos. A nacionalização implicaria uma “expropriação” dos accionistas e se a instituição tivesse uma situação líquida positiva – mais activos do que passivos – o Estado poderia ser “obrigado a indemnizar os accionistas do banco”.
À data do resgate, o BES tinha uma situação líquida positiva, embora seja complexo quantificar o impacto da perda de acesso ao financiamento do BCE nos activos e passivos do grupo. Mas, no limite, o Estado enfrentaria o risco de vários pedidos de indemnização da família Espírito Santo e restantes accionistas do BES. Mesmo no âmbito da medida de resolução adoptada, a ministra admite que o Estado poderá ser condenado a pagar indemnizações.
Foi Carlos Costa ou o Governo a decidir?
O envolvimento e o timing das acções do Governo são uma fonte inesgotável de questões dos deputados. Maria Luís Albuquerque tem sido constantemente confrontada com o momento em que tomou conhecimento das dificuldades e a sua intervenção no processo. A ministra garantiu que “a decisão da resolução do BES foi tomada pelo Banco de Portugal e comunicada ao Governo”. Maria Luís acrescentou que o Executivo foi chamado apenas a aprovar o empréstimo do Tesouro no valor de 3,9 mil milhões ao Fundo de Resolução. A ministra revelou ter reunido com frequência com o governador, mas garante que foi Carlos Costa quem assumiu com o BCE o compromisso de intervir no BES, sem consultá-la.
Maria Luís e Carlos Costa sustentam que o despoletar do resgate se dá com a retirada do estatuto de contraparte elegível para operações com o BCE no dia 1 de Agosto – o BES ficaria sem acesso ao financiamento de emergência a que estava a recorrer e entraria em incumprimento na segunda-feira. As mudanças na legislação dias antes da resolução foram justificadas como uma medida preventiva, por terem sido ponderados “vários planos de contingência” durante a crise do BES. “Pode acontecer um fogo e convém estarmos preparados, um bocadinho como um simulacro dos bombeiros”, comparou a ministra.
joao.madeira@sol.pt e sandra.a.simoes@sol.pt