A Rainha da Neve não é a reescrita, nem sequer uma reinterpretação, do conto de fadas de Hans Christian Andersen. O novo romance do escritor norte-americano trata de visões celestiais, amor, novas famílias, cancro, Nova Iorque… e cocaína e heroína, substâncias a que, nos EUA, numa gíria já fora de moda, se chamou neve.
Quando muito, podemos associar o efeito do consumo num dos protagonistas, Tyler, ao pequeno pedaço de vidro que turvou a vista e picou o coração do pequeno Kay, tornando-o uma pedra de gelo. No caso de Tyler, a farpa ilumina o seu talento como músico, mas não saberemos ao certo se lhe será fatal.
Um dia, após ter sido abandonado pela enésima vez por um namorado, Barrett, o irmão mais novo de Tyler, vê uma luz azul-cobalto, pálida e translúcida, no céu sobre Central Park. A visão não tem qualquer conteúdo. Apenas surge, assim, fortuita e inexplicável. No enredo de A Rainha da Neve, serve para reforçar a ideia de que “As visões são respostas. Respostas implicam perguntas”.
Dois irmãos, Barrett e Tyler, e a mulher deste, Beth, doente de cancro. À sua volta, amigos e amantes que, com eles, cristalizam um núcleo de afecto e entreajuda, substituto das células familiares convencionais. A Rainha da Neve coloca questões corajosas como: até que ponto a morte de um familiar funciona como libertação, tanto como perda?; como pode o sexo funcionar como laço extremo de amizade? Os casos de vida, difusos e inconclusivos, de Tyler e Barrett simbolizam a fantasia que cada um de nós constrói de si mesmo no futuro e o choque do confronto com a realidade. Aspirações e falhanços compõem, em camadas, o processo de adaptação individual à dificuldade de transcender a vida comezinha e se ser, de algum modo, excepcional.
A acção cobre entre 2004 e 2008, o segundo mandato presidencial de George W. Bush, obsessivamente criticado por Tyler. Limando cada frase, compondo cada personagem na reflexão solitária sobre a interacção com as outras e com o cenário que as envolve, Cunningham assume-se como testemunha do seu tempo (antes, o da epidemia do VIH). Com uma honestidade singular, continua a escrever sobre o direito à diferença, um dos traços fundamentais também da identidade de Nova Iorque.
A Rainha da Neve
Michael Cunningham
Gradiva
278 págs., 14 euros