E continuava: “Convencer, como se sabe, contém no seu étimo a palavra vencer. Este é um assunto tão delicado e pessoal, que eu nunca quis a seu propósito convencer ninguém, e nisso as mulheres da minha geração afastam-se das feministas. Mas, neste caso, sim, ainda que a batalha seja apenas de ordem intelectual, eu queria convencê-lo”.
A seguir, Lídia Jorge referia-se a uma passagem do artigo onde eu lembrava que Maria Lamas – conhecida lutadora pelos direitos femininos -, dizia que as mulheres trabalhadoras eram duplamente exploradas, pois trabalhavam fora de casa e tinham de continuar a fazer em casa o mesmo que faziam antes. Contestando a validade desta ideia nos dias de hoje, Lídia Jorge lembrava que “Maria Lamas falava para o seu tempo, quando trabalhar fora de casa significava ser duplamente explorado. Felizmente, o tempo mudou e acrescentou um terceiro dado ao binómio de Maria Lamas: em casa, os homens agora partilham as tarefas domésticas para que nem eles nem elas se sintam explorados. Bem basta a exploração que acontece, aleatoriamente, a elas e a eles, fora de casa. A inauguração desse novo núcleo doméstico, respeitoso, mudou tudo. Ou pelo menos está a mudar tudo, e não vai voltar para trás”.
Aqui, penso que Lídia Jorge é demasiado optimista. É verdade que, em muitos casais, homens e mulheres já partilham as tarefas domésticas. Mas estamos longe, muito longe, de se tratar da maioria.
O e-mail prosseguia: “Já a felicidade, este estado que se deseja, tem outras componentes, e a maior parte delas são indecifráveis”. E a terminar, respondendo directamente a uma referência onde eu anotava que, embora defensora intrépida da causa da libertação das mulheres, Lídia Jorge tinha ainda hoje como local de referência de paz e conforto o local da casa onde a avó amassava o pão da família, a escritora dizia: “Seja como for, essa mulher que amassava o pão no lugar onde eu escrevo, se fosse nossa contemporânea, talvez escrevesse. Assim, as últimas palavras que disse foi um lamento que toda a família lhe ouviu ao longo dos seus últimos anos, vezes sem conta: 'A minha mãe não me mandou à escola'. Disse-o tanta vez que ficou como bordão na nossa família, quando alguém repete um assunto”.
Esta última passagem mostra como a realidade é complexa, podendo ser contraditória e anacrónica. Para Lídia Jorge, quando era miúda, essa imagem da avó a fazer o pão transmitia-lhe segurança, ao ponto de esse sentimento ter chegado até aos dias de hoje. Mas a avó, inversamente, lamentava não ter ido para a escola. E ninguém pode dizer se teria sido ou não mais feliz se tal tivesse acontecido.
Por isso mesmo, o título do meu artigo era uma interrogação: As mulheres são mais felizes? Não se afirmava nada. Mas o simples facto de não se dizer que sim, que são mesmo mais felizes, levantou uma onda de indignação na internet.
O problema é que há temas que ninguém quer debater porque não tem respostas para eles. Assim, tornam-se 'assunto tabu'.
Celebram-se – e bem – as conquistas das mulheres em termos de independência, de realização profissional, de fuga à 'escravidão' das tarefas domésticas. Mas ninguém quer debater o preço que isso teve – com medo de que esse 'preço' ponha em perigo a luta no sentido da igualdade plena.
Ora, é óbvio que a saída da mulher do casulo do lar representou um abanão na sociedade inteira, fazendo tremer de alto a baixo a família tradicional. Estando a maior parte do dia fora de casa, as mulheres passaram a ter outras solicitações e os divórcios dispararam. As crianças deixaram de ter as mães em casa, sendo depositadas durante todo o dia em creches ou jardins-de-infância onde podem ter o melhor tratamento mas não têm o mais importante: o afecto dos pais, por definição único.
Esse outro lado nunca é tratado seriamente.
E agora pergunto: todas as mulheres gostarão de trabalhar fora de casa? Nenhuma preferiria ficar em casa a cuidar dos filhos? Nenhuma consideraria isso um privilégio? Algumas não se considerarão exploradas pelos maridos – que as mandam trabalhar, para aumentar o orçamento familiar, mas as obrigam a continuar a fazer tudo em casa como se não trabalhassem? São as tais 'duplamente exploradas', de que falava Maria Lamas.
Julgo, de facto, que algumas mulheres prefeririam ter a possibilidade de ficar em casa em certos períodos da vida – em vez de irem a correr para o emprego depois de deixarem os filhos na escola, voltarem a correr do emprego para irem buscar os filhos à escola, irem a correr para casa fazer o jantar. Por estas e por outras, em muitos países da Europa as mulheres trabalham em part-time – exactamente para conciliarem a vida familiar com a vida profissional. Em Portugal, porém, isso ainda se pratica pouco. Portugal é o país europeu em que as mulheres trabalham mais tempo fora de casa.
Claro que, chegados aqui, me perguntarão: e por que não serão os homens a ficar no lar a cuidar dos filhos? Essa questão parte de um pressuposto falso: o de que homens e mulheres são exactamente iguais e podem desempenhar indiferentemente as mesmas tarefas. Ora, não são. Felizmente, homens e mulheres são diferentes. São iguais em direitos mas diferentes na substância e no lugar na família. O lugar da mãe é insubstituível, como aliás o do pai.
No seu e-mail, Lídia Jorge dizia ainda “que a questão da felicidade tem outras componentes e a maior parte delas são indecifráveis”. É totalmente verdade. E não foi por acaso que, no artigo, eu perguntei se as mulheres são mais felizes. É que vejo cada vez mais mulheres com problemas de depressão, a tomar ansiolíticos, tranquilizantes, chás para os nervos. A que se deve tanta angústia? Sendo as mulheres muito mais independentes do que no passado, não deveriam ser na sua maioria mais felizes?
A terminar o seu texto, Lídia Jorge perguntava: “Se o seu pai ainda cá estivesse, como comentaria o assunto que o José António Saraiva aborda na TABU?”.
O meu pai viveu com várias mulheres, quase todas 'avançadas para o seu tempo', como costumava dizer-se. Mas tinha nostalgia da época da vida em que estava em casa com os irmãos – e a mãe a cuidar deles. De certo modo, essa era para ele a 'imagem da felicidade'.
A História não anda para trás e as mulheres não voltarão a ser fadas do lar. Isso está fora de questão. Mas não discutir esses temas faz com que não se resolvam os problemas que o processo de libertação das mulheres levantou. Faz com que não se encare de frente, por exemplo, o problema da solidão dos jovens nas sociedades contemporâneas. Os problemas que existem atiram-se para debaixo do tapete.
Como aconteceria com este texto – que seria proibido se muitas pessoas (que não Lídia Jorge, que teve a frontalidade de responder ao meu desafio, embora estivesse 80% em desacordo comigo) tivessem poderes para o fazer…