O prazer de debater

A propósito do artigo ‘As mulheres são mais felizes?’, aqui publicado há quatro semanas, onde eu escrevia que hoje as mulheres são sem dúvida mais independentes, mais realizadas profissionalmente, mas não necessariamente mais felizes, Lídia Jorge escreveu-me um e-mail do qual, com a sua permissão, publico os extractos principais. Começava por dizer: “Estou em desacordo…

E continuava: “Convencer, como se sabe, contém no seu étimo a palavra vencer. Este é um assunto tão delicado e pessoal, que eu nunca quis a seu propósito convencer ninguém, e nisso as mulheres da minha geração afastam-se das feministas. Mas, neste caso, sim, ainda que a batalha seja apenas de ordem intelectual, eu queria convencê-lo”.

A seguir, Lídia Jorge referia-se a uma passagem do artigo onde eu lembrava que Maria Lamas – conhecida lutadora pelos direitos femininos -, dizia que as mulheres trabalhadoras eram duplamente exploradas, pois trabalhavam fora de casa e tinham de continuar a fazer em casa o mesmo que faziam antes. Contestando a validade desta ideia nos dias de hoje, Lídia Jorge lembrava que “Maria Lamas falava para o seu tempo, quando trabalhar fora de casa significava ser duplamente explorado. Felizmente, o tempo mudou e acrescentou um terceiro dado ao binómio de Maria Lamas: em casa, os homens agora partilham as tarefas domésticas para que nem eles nem elas se sintam explorados. Bem basta a exploração que acontece, aleatoriamente, a elas e a eles, fora de casa. A inauguração desse novo núcleo doméstico, respeitoso, mudou tudo. Ou pelo menos está a mudar tudo, e não vai voltar para trás”.

Aqui, penso que Lídia Jorge é demasiado optimista. É verdade que, em muitos casais, homens e mulheres já partilham as tarefas domésticas. Mas estamos longe, muito longe, de se tratar da maioria.

O e-mail  prosseguia: “Já a felicidade, este estado que se deseja, tem outras componentes, e a maior parte delas são indecifráveis”. E a terminar, respondendo directamente a uma referência onde eu anotava que, embora defensora intrépida da causa da libertação das mulheres, Lídia Jorge tinha ainda hoje como local de referência de paz e conforto o local da casa onde a avó amassava o pão da família, a escritora dizia: “Seja como for, essa mulher que amassava o pão no lugar onde eu escrevo, se fosse nossa contemporânea, talvez escrevesse. Assim, as últimas palavras que disse foi um lamento que toda a família lhe ouviu ao longo dos seus últimos anos, vezes sem conta: 'A minha mãe não me mandou à escola'. Disse-o tanta vez que ficou como bordão na nossa família, quando alguém repete um assunto”.

Esta última passagem mostra como a realidade é complexa, podendo ser contraditória e anacrónica. Para Lídia Jorge, quando era miúda, essa imagem da avó a fazer o pão transmitia-lhe segurança, ao ponto de esse sentimento ter chegado até aos dias de hoje. Mas a avó, inversamente, lamentava não ter ido para a escola. E ninguém pode dizer se teria sido ou não mais feliz se tal tivesse acontecido.

Por isso mesmo, o título do meu artigo era uma interrogação: As mulheres são mais felizes? Não se afirmava nada. Mas o simples facto de não se dizer que sim, que são mesmo mais felizes, levantou uma onda de indignação na internet.

O problema é que há temas que ninguém quer debater porque não tem respostas para eles. Assim, tornam-se 'assunto tabu'.

Celebram-se – e bem – as conquistas das mulheres em termos de independência, de realização profissional, de fuga à 'escravidão' das tarefas domésticas. Mas ninguém quer debater o preço que isso teve – com medo de que esse 'preço' ponha em perigo a luta no sentido da igualdade plena.

Ora, é óbvio que a saída da mulher do casulo do lar representou um abanão na sociedade inteira, fazendo tremer de alto a baixo a família tradicional. Estando a maior parte do dia fora de casa, as mulheres passaram a ter outras solicitações e os divórcios dispararam. As crianças deixaram de ter as mães em casa, sendo depositadas durante todo o dia em creches ou jardins-de-infância onde podem ter o melhor tratamento mas não têm o mais importante: o afecto dos pais, por definição único.

Esse outro lado nunca é tratado seriamente.

E agora pergunto: todas as mulheres gostarão de trabalhar fora de casa? Nenhuma preferiria ficar em casa a cuidar dos filhos? Nenhuma consideraria isso um privilégio? Algumas não se considerarão exploradas pelos maridos – que as mandam trabalhar, para aumentar o orçamento familiar, mas as obrigam a continuar a fazer tudo em casa como se não trabalhassem? São as tais 'duplamente exploradas', de que falava Maria Lamas.

Julgo, de facto, que algumas mulheres prefeririam ter a possibilidade de ficar em casa em certos períodos da vida – em vez de irem a correr para o emprego depois de deixarem os filhos na escola, voltarem a correr do emprego para irem buscar os filhos à escola, irem a correr para casa fazer o jantar. Por estas e por outras, em muitos países da Europa as mulheres trabalham em part-time – exactamente para conciliarem a vida familiar com a vida profissional. Em Portugal, porém, isso ainda se pratica pouco. Portugal é o país europeu em que as mulheres trabalham mais tempo fora de casa.

Claro que, chegados aqui, me perguntarão: e por que não serão os homens a ficar no lar a cuidar dos filhos? Essa questão parte de um pressuposto falso: o de que homens e mulheres são exactamente iguais e podem desempenhar indiferentemente as mesmas tarefas. Ora, não são. Felizmente, homens e mulheres são diferentes. São iguais em direitos mas diferentes na substância e no lugar na família. O lugar da mãe é insubstituível, como aliás o do pai.

No seu e-mail, Lídia Jorge dizia ainda “que a questão da felicidade tem outras componentes e a maior parte delas são indecifráveis”. É totalmente verdade. E não foi por acaso que, no artigo, eu perguntei se as mulheres são mais felizes. É que vejo cada vez mais mulheres com problemas de depressão, a tomar ansiolíticos, tranquilizantes, chás para os nervos. A que se deve tanta angústia? Sendo as mulheres muito mais independentes do que no passado, não deveriam ser na sua maioria mais felizes?

A terminar o seu texto, Lídia Jorge perguntava: “Se o seu pai ainda cá estivesse, como comentaria o assunto que o José António Saraiva aborda na TABU?”.

O meu pai viveu com várias mulheres, quase todas 'avançadas para o seu tempo', como costumava dizer-se. Mas tinha nostalgia da época da vida em que estava em casa com os irmãos – e a mãe a cuidar deles. De certo modo, essa era para ele a 'imagem da felicidade'.

A História não anda para trás e as mulheres não voltarão a ser fadas do lar. Isso está fora de questão. Mas não discutir esses temas faz com que não se resolvam os problemas que o processo de libertação das mulheres levantou. Faz com que não se encare de frente, por exemplo, o problema da solidão dos jovens nas sociedades contemporâneas. Os problemas que existem atiram-se para debaixo do tapete.

Como aconteceria com este texto – que seria proibido se muitas pessoas (que não Lídia Jorge, que teve a frontalidade de responder ao meu desafio, embora estivesse 80% em desacordo comigo) tivessem poderes para o fazer…