O exorcista

António Costa assumiu com indiscutível sucesso, reconhecido quase unanimemente pela imprensa, o papel de exorcista do fantasma socrático que pairava sobre o último Congresso do PS. Ao contrário do que muitos previam ou davam mesmo como inevitável, o novo secretário-geral conseguiu refrear os estados de alma de uma grande parte dos congressistas depois da detenção…

Ironia cruel: com Sócrates preso, o PS e António Costa pareceram libertar-se da sombra de um passado político que os manietava, tal  como  ainda  recentemente  víramos  durante  a  homenagem prestada no Parlamento por Ferro Rodrigues  ao  seu  sucessor  na  liderança  do  partido. 

Ao invocar a separação de águas entre a Justiça e a política para acalmar as hostes socialistas na sequência da prisão de Sócrates, Costa enfrentou – e ultrapassou – o seu primeiro grande teste de afirmação.

E até a estratégia de viragem à esquerda – mais nas palavras e emoções imediatas, é certo, do que nos actos ainda suspensos de incógnitas futuras – pareceu inspirada pela crise de identidade vivida pelo PS, não apenas devido ao caso Sócrates mas também à refrega dos últimos meses entre Costa e Seguro. 

Cereja em cima do bolo: os próprios 'seguristas' fizeram questão de demonstrar, com a sua irrisória disputa de lugares para a futura direcção do partido, que não existia entre eles qualquer cimento de convicções genuínas e, assim, dispensaram Costa de ensaiar arranjos ínvios com a(s) corrente(s) minoritária(s). 

O recém-eleito secretário-geral pôde compor um elenco dirigente moldado pelos seus propósitos renovadores, depois de estar também liberto da representação da chamada ala socrática – à qual, embora indirectamente, ele estivera também associado pelo seu antigo estatuto de 'número dois' de José Sócrates. 

Afastado definitivamente Sócrates, seja qual for o desfecho do processo que o conduziu à prisão, auto-excluído o 'segurismo', António Costa vê-se em posição verdadeiramente soberana, com uma larga avenida à sua frente e os ventos a correrem-lhe de feição. Pelo menos internamente e para já. Resta o imprevisível impacto do folhetim que irá desenrolar-se até às eleições e saber como os portugueses, abalados pelo acontecimento judicial (e político, apesar da separação das águas) mais traumático em décadas de democracia, irão reagir à palavra mágica de 'confiança' lançada no Congresso socialista. 

A conjuntura serviu também a Costa para ousar o que constitui, para muitos, uma verdadeira quadratura do círculo: a ruptura estratégica com o 'bloco central'. Uma ousadia que, aliás, logo suscitou as críticas de Francisco Assis e outros adeptos do 'centrão', essa inevitabilidade nacional alimentada pelo bloqueio histórico das relações entre a esquerda de governo e a esquerda de protesto. 

De facto, apesar dos novos sinais de degelo trazidos por um partido como o Livre e outros micromovimentos na sua órbita, a formação de uma maioria de esquerda consistente é um problema ainda sem efectiva solução à vista, tanto a nível interno como internacional.

E a viragem à direita da social-democracia europeia, na esteira de Blair e Schröder, tem acentuado essa dificuldade. 

Mas o diagnóstico de Costa, para além de tentar responder à crise de identidade do PS, é motivado por uma constatação em que se reconhecem largas camadas de eleitores, sobretudo depois destes três anos de governação de uma direita que apenas admite compromissos nos termos ditados por ela. Costa tem efectivamente razão quando afirma que, em democracia, “o pior que pode acontecer é quando se gera um enorme empastelamento, um pântano, quando tudo é farinha do mesmo saco”.

Como evitar fazer parte desse saco é o grande problema, devido sobretudo aos constrangimentos externos que não são superáveis apenas por voluntarismo ou pela denúncia dos efeitos mais dramáticos da crise em que vivemos (um dos quais, a violência doméstica e o assassínio de mulheres constituiu o momento mais emotivo do Congresso socialista). 

Mas também é certo que, se não houver a vontade de remar contra a resignação e despertar um sobressalto de esperança num país que manifestamente a perdeu, qualquer projecto de mudança política está, à partida, condenado ao fracasso.

Falta apenas saber se, depois do exorcismo, o PS de Costa será capaz de mobilizar os portugueses e conquistar a sua confiança. E se, na Europa, os ventos que começam a soprar, embora ainda difusamente, contra a fatalidade da recessão e do empobrecimento, poderão abrir um novo horizonte a essa confiança.