O corpo falha-nos e o espírito vinga-se: já não depende de nada nem de ninguém, torna-se imune aos engodos do cálculo ou da vaidade, pode dizer o que pensa e agir de acordo com o que sente.
Passamos a vida inteira a amordaçar os sentimentos para não parecermos estúpidos ou tolos, sem repararmos que tolos e estúpidos são os que não sentem.
Escreveu o sábio Miguel de Unamuno que tinha visto gatos a raciocinar, mas nunca os vira rir ou chorar.
As declarações feitas por Mário Soares após a visita que fez a José Sócrates na cadeia foram desancadas por uma plêiade não-felina de Altos Raciocinadores da Nação como excessivamente «emocionais» (portanto, desprezíveis) e, em suma, inconvenientes.
Ora Mário Soares completa 90 anos no próximo domingo e não deve nada a ninguém.
Em compensação, todos nós lhe devemos muito.
Eu estou particularmente à vontade para o dizer, dado que nunca fui próxima dele e até empenhei meio ano da minha vida, a título completamente gratuito e puramente idealista, numa campanha política adversária da sua – a de Manuel Alegre à Presidência, em 2005.
Não me pareceu bem que, depois de ter afirmado publicamente que apoiaria Alegre e de o próprio ter confirmado a sua disponibilidade, Soares tivesse decidido avançar com a sua candidatura.
E pareceu-me também que ninguém, nem Mário Soares, deveria candidatar-se pela terceira vez à Presidência, porque Portugal não é uma monarquia e as oportunidades devem ser distribuídas de forma ampla e democrática.
Hoje, com o avançar da idade e após a dura experiência de ser governada por demasiados inexperientes, sinto-me, republicanamente falando, bastante mais monárquica.
Há dez anos também acreditava que os governos de coligação seriam mais eficazes e transparentes do que os de maioria absoluta – agora sei que a realidade prova o contrário; as coligações tendem a gerar negociatas e conluios que prejudicam a eficácia e as contas do país.
Mas nunca esqueci que devemos a Mário Soares, na sequência de Ramalho Eanes, a estabilização democrática do país, a entrada na então Comunidade Europeia, e uma vida de dedicação ao bem público.
O meu saudoso amigo António Alçada Baptista repetia-me que estaria sempre ao lado de Mário Soares porque poucos são aqueles que, verdadeiramente confrontados com o dilema liberdade ou segurança, escolhem a liberdade – e Soares provou estar sempre do lado da liberdade, mesmo pagando o preço da prisão e do exílio.
Como Alegre, aliás.
Num Estado de Direito, a Justiça não é de emanação divina, mas terrena, servindo a Democracia e as suas leis, representando, ao mais alto grau, a nobreza da acção política, que nunca deve confundir-se com movimentações ideológicas partidárias, sob pena de perder o objectivo primordial que o seu nome encerra.
Espero que a decisão seja célere e a verdade inequivocamente demonstrada, depois de ouvidas ambas as partes do processo. A prisão preventiva é, por si só, uma medida extrema e gravemente lesiva para o futuro dos que a ela são sujeitos, mesmo quando posteriormente ilibados (recordo, por exemplo, o efeito devastador que teve na vida de Paulo Pedroso).
O que Mário Soares fez foi outra coisa, completamente distinta da acção judicial e igualmente importante: recordar-nos que os sentimentos, em particular a amizade, são a essência da vida. Num mundo cada vez mais cínico e céptico, bem necessitamos deste exemplo luminoso.