O Congresso e as amnésias

A prisão preventiva de José Sócrates pôs em alvoroço a família socialista, que engomava as suas melhores vestes para celebrar a esperança do regresso ao poder, no curto prazo. 

A convicção de António Costa, ao prometer um Governo socialista em marcha triunfal – desde que se propôs varrer de cena António José Seguro -, convenceu as hostes de que teriam nele o guia certo. 

Foi o bastante para que as tropas socráticas tocassem a reunir, promovendo a reabilitação expedita do chefe. O movimento exibiu medalhas e exigiu condecorações. O espectáculo mediático parecia imparável.

Ainda em Junho, ao apresentar no Porto a sua candidatura às primárias, Costa não se fez rogado e disse que “o PS deve orgulhar-se (…) do impulso reformista com que, sob a liderança de José Sócrates, assumiu o Governo em 2005”.

Este tom épico seria retomado por Ferro Rodrigues, na sua primeira alocução de fundo como novo líder parlamentar, que , em perfeito estado de negação sobre as origens e a autoria do resgate do país, afirmou, sem estremecer, que fora “um pedido de ajuda contra o qual muitos se bateram até aos limites de forças e possibilidades. E aqui há que salientar uma pessoa, um nome: José Sócrates”.

Tudo isto não é novo. Novo, porém, foi a súbita amnésia que acometeu ambos na FIL. António Costa apagou Sócrates da fotografia do Congresso. E Seguro não teve melhor sorte. Não faltaram os zelotas a interpretar o gesto como prova de que tinha o partido na mão. O unanimismo falseia a união. E dissimula os piores vazios.

Compreende-se que Francisco Assis tenha batido com a porta e feito as malas de regresso a Bruxelas, sem usar da palavra no Congresso – agendada para horas mortas por Carlos César, um açoriano há muito encostado à carreira política como modo de vida.

Na coreografia dos discursos só cabiam clichés avulsos, desde o “choque brutal”, “à Justiça o que é da Justiça”, ou “não estamos ensombrados e não temos medo de fantasmas”, como proclamou o histórico Manuel Alegre, sem mencionar o fantasma…

Remetido para as trevas, o nome de José Sócrates eclipsou-se na boca dos congressistas. Uma espécie de exorcismo. Nada que surpreenda. 

Não fora a romaria a Évora – que alguns fizeram por amizade e outros para aquietar consciências – a celebração do PS passaria inteiramente ao lado dos oficiantes proscritos. 

Porém, incontinente, Mário Soares afundou-se no descalabro, à saída da visita no estabelecimento prisional.
E se os 'mimos' que proferiu foram a quente, já o seu testemunho a frio, recolhido pelo Expresso antes da detenção do ex-primeiro ministro – a pretexto de completar 90 anos -, constituiu uma expressiva amostra do seu actual estado de espírito: “Sou o gajo que lhes atira mais às trombas (…) E não digo mais nada, não quero falar mais de política. Porque sou um cidadão especial”. Exemplar.

De facto, o festejado nonagenário é um “cidadão especial”. Do lado do mérito, deixou a sua marca como protagonista na descolonização, na coragem cívica com que travou a nova ditadura inspirada pelo PCP de Álvaro Cunhal ou na adesão de Portugal à então CEE. Não foi de menos.

Infelizmente, por culpa própria e do círculo que o instrumentaliza, Mário Soares está a perder o lugar na História. A sua deriva radical aproximou-o de uma esquerda inconsequente, onde vicejam personagens menores, como se viu nos conclaves da Aula Magna, alguns deles agora de braço dado com António Costa, à procura da sua sinecura. 

Até Sampaio da Nóvoa , um académico enfeitiçado pela política, se mostra “disposto a tudo”, com direito a lugar de honra no Congresso socialista, de cravo ao peito e discurso inflamado. A indefinição de Guterres estimula-o, sem perceber que lhe poderá estar reservado um destino parecido com o de Fernando Nobre, quando quis levantar voo na barcarola das suas ambições…

Entre o médico e o catedrático há uma ponte em comum. Ambos foram ou são beneficiários da simpatia de Mário Soares. O primeiro, por ter servido contra Alegre. O segundo, por ser um recurso contra quem vier da direita, se à esquerda outros não aparecerem.  

Mário Soares está zangado com a idade, com “a política de direita” e “com a Justiça”. Compreendem-se as duas primeiras. Mas o jurista – como se reclamou -, ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República têm um dever de reserva perante as instituições democráticas e a Justiça em particular. 

A balança, por muito que lhe custe, não pode ter dois pesos e duas medidas, consoante o arguido seja de esquerda ou de direita. Há suspeitos e condenados dos dois lados. Convirá sempre lembrar que Portugal não é uma 'República de Juízes'. Mas – não menos importante – importa que não se transforme no reino da impunidade. À pala do partido. Ou da seita.