Conversa surda

Quanto mais humana é uma obra de arte, mais possibilidades tem de ser lida como universal. Mas, o que significa conter-se a humanidade num romance? A resposta surge, límpida, em ‘O Meu Irmão’, romance de estreia de Afonso Reis Cabral, Prémio Leya 2014, seleccionado entre 361 originais, de 14 países.

Quanto mais humana é uma obra de arte, mais possibilidades tem de ser lida como universal. Mas, o que significa conter-se a humanidade num romance? A resposta surge, límpida, em ‘O Meu Irmão’, romance de estreia de Afonso Reis Cabral, Prémio Leya 2014, seleccionado entre 361 originais, de 14 países.

“Ele era amor em carne, amor em força bruta”, diz o narrador acerca do irmão, “mongolóide”. De aspecto “infantil e velho”, Miguel tem 40 anos, menos um do que o narrador, que detém a sua guarda, desde a morte dos pais. Durante uns dias, os dois reabitam a casa da família numa minúscula aldeia de xisto, perto do rio Paiva e com apenas mais três habitantes (um casal e o filho). A narração do que ali vivem e do porquê de ali terem ido parar surge na primeira pessoa do singular e constitui o romance. Às vezes, quando relata o passado familiar, o narrador usa um “nós” em que assume falar pelo irmão deficiente, de modo a suprir a impossibilidade de diálogo.

Imagina-se que ‘O Meu Irmão’ faça um uso flexível de material autobiográfico; o autor tem um irmão com síndrome de Down. Talvez fosse impossível, sem experiência própria, reproduzir com tamanha espessura a intimidade de uma relação como esta. Mas é um absoluto lugar-comum dizer-se que o sentimentalismo seria o registo expectável. A maior qualidade do romance reside na ambivalência dos sentimentos do narrador para com o irmão deficiente. Ele enjeita-o, ridiculariza-o, diminui-o. Ao mesmo tempo, inveja o “pequeno paraíso” que ele habita e a sua capacidade de amar e de ser amado. Miguel força-o à culpa permanente, porque se mostra puro e “tem toda a desculpa do mundo, que o comprimiu dentro de si mesmo”. No limite, força-o a um desfecho violento, expressão máxima de uma rivalidade latente e de um vil sentimento de posse.

O amor entre Miguel e Luciana (a colega “que guardava um frasquinho de lavanda no bolso de modo a cheirar bem só para ele”) é dos mais belos na literatura recente. Seria muito dispensável a intersecção no texto de uma “voz interior, o homúnculo”. Todavia, impera no romance um soberbo domínio expressivo (a que não será alheia a formação clássica do autor) e uma grande coerência. ‘O Meu Irmão’ é um romance admirável.

Livro:

'O Meu Irmão'

Afonso Reis Cabral

Leya

365 págs.

15.50 euros