Como disse o outro

Um no topo, outra na base do prédio. Paulinho está fechado num sótão, fugido da polícia, e alimenta-se de pombos, caçados no algeroz. Também mata ratazanas e destrói pelotões de formigas. Em tempos, Purificação foi a mais bela borboleta da cidade. “Um dia a pele da cara, sem carta registada ou aviso de recepção, estalou…

Um no topo, outra na base do prédio. Paulinho está fechado num sótão, fugido da polícia, e alimenta-se de pombos, caçados no algeroz. Também mata ratazanas e destrói pelotões de formigas. Em tempos, Purificação foi a mais bela borboleta da cidade. “Um dia a pele da cara, sem carta registada ou aviso de recepção, estalou como verniz de banco de jardim”. Agora, lustra o chão num arrastar de pantufas, enquanto desliza até ao tempo “dos anos lisos, não gretados da infância, quando era alegre como a felicidade e arrastava os pés nas chinelas da mãe”.

No quarto romance, Rui Cardoso Martins prossegue a crónica dos mecanismos do tempo, o histórico e o comezinho, a actuarem sobre as vidas de gente anónima, vidinhas contaminadas pela sina de um país cada vez mais pobre, cada vez mais triste, cada vez mais velho. ‘O Osso da Borboleta’ não é um romance feliz, mas prova (como em ‘E Se Eu Gostasse Muito de Morrer’) que “não há vida que não dê para um currículo breve”.

Jornalista, cronista, argumentista, Rui Cardoso Martins tem trabalhado na ficção um estilo invulgar, contaminado por todos esses outros registos de escrita. Marcas de oralidade, imagens e metáforas insólitas, um catálogo inesperado de aforismos populares e especulações enciclopédicas (aqui, privilégio às informações sobre a natureza), o ritmo rápido, entretecido com a distensão de reflexões lírico-filosóficas sobre as evidências cruéis, disparatadas, da crueza da vida, para uns mais igual do que para outros.

As considerações de Purificação, com quase 80 anos, e os “voos mentais de pássaro” de Paulinho são enternecedores, roídos por dentro pela solidão e pelo desamparo. Lembranças da guerra, um Stradivarius abandonado num sótão, ou um hotel de luxo naufragado em terra, um casal e uma amante, promessas, traições e dívidas, uma marginal que se tornou marginália. “Os pensamentos esmagados, quando levantados por outros nas mandíbulas, parecem gigantes com o dobro do tamanho”.

A verdade sobre um tempo é como um osso escondido ou inexistente, com o qual não se conta para montar o esqueleto oficial da memória. A verdade sobre um tempo são fábulas de ouvir contar.

Livro:

'O Osso da Borboleta'

Rui Cardoso Martins

Tinta da China

237 págs.

16.20 euros