Diogo Morgado: ‘Lido mal com a minha imagem’

A meio de uma frase usa sem querer a expressão ‘whatever’ em inglês e logo se recrimina por isso. A viver há seis meses nos Estados Unidos, Diogo Morgado é o primeiro a dizer que não quer que isso aconteça. A conversa prossegue e, no fim, confirma-se que o deslize é caso isolado. O actor…

O sucesso do projecto e, em particular, da sua interpretação como Jesus Cristo – vista por mais de 100 milhões de pessoas – suscitou tanto interesse nos Estados Unidos que Oprah Winfrey quis conhecer o actor. Ser o primeiro português entrevistado pela apresentadora foi uma avalanche de emoções, mas Diogo Morgado prefere ser realista. Sabe que se não continuar a trabalhar com a mesma dedicação, a 'bênção' de Oprah não resulta automaticamente em convites para trabalhos interessantes.

Foi a já longa experiência de representação que lhe ensinou isso. O actor começou a trabalhar aos 15 anos como modelo, passou depois para as telenovelas, fez teatro, revista e cinema. Aos 18 protagonizou 'Amo-te Teresa' e tornou-se uma cara familiar para milhares de portugueses. Aos 32 chegou à televisão americana e agora, prestes a completar 34, está a terminar as gravações de uma nova série na América: 'The Messengers', onde interpreta o homem mais maléfico do mundo. Coincidência depois de ter sido o homem mais divino do planeta? Não, foi uma decisão calculada.

Apesar de só se esquivar a falar da vida pessoal quando tem a ver com a intimidade da sua família, quando acabo de ler uma entrevista sua parece-me sempre que revela muito pouco de si. Porquê?

A sério? Às vezes é que há alguma dificuldade em acreditar que os actores são pessoas normais. Eu assumo o que sou, filho de trabalhadores uma vida inteira, que me educaram com o conceito de que uma pessoa tem de se esforçar muito para ter as coisas. Cresci a brincar na rua, a jogar videojogos, coisa que ainda hoje adoro fazer. Se não encontra mais, é porque não há mais.

Mas ser actor ajuda-o a camuflar assuntos?

Não sinto que o faça, até porque sou claro sobre aquilo de que não quero falar. Não tenho problemas em falar no meu filho, na minha companheira, em assumir que a família é importante. Não falo é de detalhes da relação. O meu trabalho passa por uma exposição pública, a pessoa com quem divido a minha vida não tem este trabalho, logo não tem de se sujeitar ao escrutínio público.

Vamos lá então tentar conhecer o Diogo Miguel Morgado Soares. Cresceu na rua?

Cresci na Margem Sul e a minha interacção social, o meu conhecimento do que é estar em grupo, descobri-a na rua. Hoje em dia a malta é muito mais protegida. O meu irmão, por exemplo, é seis anos mais novo e já não brincou na rua da mesma maneira que eu. Quando digo que brinquei na rua  não é para me fazer mais humilde do que  sou. É a minha história.

Onde se posicionava nesse grupo?

Era o mais chato, o mais totó. Era sempre o primeiro a dizer 'não podemos fazer', mesmo que estivesse mortinho para fazer.

Como por exemplo?

Saltar cercas para roubar laranjas. Acabava por ir, mas sempre cheio de medo. Era o mais maricas de todos. Mas também era muito ingénuo. Lembro-me de uma vez perguntar ao meu pai de onde vinha a água da chuva e se a podia beber. Disse-me que se caísse na minha boca podia e, a partir daí, todos os dias esperava pela chuva. Quando choveu não pude sair de casa e, quando finalmente sai, já a chuva tinha parado, vi uma poça de água e nem hesitei. Só parei quando ouvi a minha mãe gritar 'Diogo Miguel…'. Era muito totó e ingénuo, mas aquilo ficou-me impresso por querer muito uma coisa. Fiquei cismado e fui até ao fim.

Isso tem pautado a sua vida?

Sim. Isso e uma atracção pelo remar contra a maré. Quando comecei, comecei com o estigma da imagem. Nunca quis ser actor, tropecei na profissão e os actores estabelecidos olhavam para mim como 'é um miúdo giro'. Senti uma injustiça grande por estar a ser julgado sem sequer ter aberto a boca e o meu impulso foi provar que era mais do diziam. Isto acompanha-me até hoje. Gosto de aceitar convites inesperados. Estive dois anos a fazer revista à portuguesa e quando recebi o convite só pensei 'não tenho piada, não habita em mim a arte de fazer rir, mas se calhar nunca mais vou ter oportunidade de fazer uma revista'. Foi o mesmo com Os Malucos do Riso, onde aprendi o ritmo básico do humor. Aceitei estes projectos por achar que não ia ser capaz. Saber que me posso espetar ao comprido é um dos aspectos que me atrai a aceitar um trabalho. Foram sempre as adversidades que me fizeram crescer nesta profissão.

A tendência normal seria fugir do que não lhe permitiria brilhar.

Nunca quis brilhar, não é isso que me motiva. Fui para a revista porque não era a minha zona de conforto. Isso é a minha casa, a minha família, o resto é uma aventura. Uma pessoa só cresce com os obstáculos, quando se questiona 'como vou resolver isto?'.

Não descansa até encontrar respostas?

Descanso. Há coisas que são porque são e isso já é a resposta. Mas quando vejo um ex-primeiro-ministro preso, acusado de ganhar milhões ilicitamente, o meu sentimento é: 'Porquê? Que tipo de ser faz isto?'.

Agora vive nos Estados Unidos, mas não se desliga da actualidade do país?

Nunca. A única coisa a que não estou atento é ao futebol, mas isso porque nunca liguei muito. Só ligo à Selecção porque sou patriota. De resto o jogo não me entusiasma.

Mas chegou a praticar desporto.

Sim, fui atleta. Fiz 100 metros barreiras e salto em altura, mas tive uma rotura muscular, que fez fibrose nos ligamentos, e nunca mais voltei a correr. Como não podia usar as pernas o meu pai incentivou-me a fazer outra coisa e federei-me em canoagem, mas nunca me fascinou tanto como o atletismo. Aquela coisa de estar sempre a tentar superar o recorde anterior nos 100 metros, a competitividade que isso gera, estimulava-me. Sou muito competitivo, mas de forma saudável. Gosto de ter ao meu lado os melhores para que juntos possamos crescer.

Transportou essa característica para o trabalho de actor?

Não escondo que sim. A minha primeira reacção é sempre racional, é sempre estratega. Não faço castings em Portugal há já algum tempo, mas nos Estados Unidos, por exemplo, quando vejo um texto, o meu pensamento é: 'Como é que 80 a 90% dos actores vão abordar isto? Se vão fazer desta maneira, posso fazer todas menos essa'.

Como sabe o que vão fazer?

É muito fácil de ver. O texto empurra-te para um tom e vendo as séries americanas sei qual é o ritmo, a cadência. O que faço é assimilar isso tudo, apontar as direcções todas de um texto para a forma como o quero fazer para que, quando o estou a fazer, seja autêntico. Aquilo sai sem pensar. É como uma pessoa que treina para ser marceneiro. Faz uma mesa e quando lhe perguntam como fez, já está tão interiorizado que ele não sabe explicar os passos. Para mim os textos só fazem sentido dessa maneira. O que faço tem de ser absoluta verdade, seja o gajo mais execrável ou Jesus, a pessoa mais próxima do Divino. A intenção dos textos têm que habitar em mim antes de os fazer.

O que habitava em si de Jesus Cristo antes de 'A Bíblia'?

Jesus é a definição do amor puro e incondicional, algo que às vezes só conseguimos alcançar quando temos um filho. As pessoas perdem muito tempo nas mil e uma interpretações da Bíblia quando tudo isto quer apenas dizer uma coisa: 'Amai-vos uns aos outros'. E isso eu sei o que é. Sempre fui uma pessoa espiritual, em miúdo ia à igreja e estudava a Bíblia. Esse conhecimento ajudou.

Como se preparou para o casting?

Perguntei-me imensas vezes: 'Qual é a mensagem?'. Sabia que, mesmo que ficasse, ia ter um trabalho difícil porque já foi feito imensas vezes. Então fiz uma lista de coisas que achei que a personagem tinha que ter e percebi que a única forma de aceitar era se fosse um Jesus que não sabia o que ia acontecer. Todos os retratos que vi são sempre de alguém inalcançável, de uma identidade acima de nós, alguém que chega, olha para nós e sabe quem somos, tipo um super-herói. Isso é fácil, aí não há o livre-arbítrio da escolha. Claro que vamos seguir esta pessoa que tem super-poderes. Por isso, o que quis fazer foi um tipo igualzinho a nós, mas que tem algo de especial que faz com que as pessoas não consigam tirar os olhos dele, não consigam deixar de o ouvir.

Fez essa exigência para aceitar o papel?

Sim. Grande parte das opções tomadas em relação à personagem foram coisas que eu trouxe e que não existiam no papel.

Isso aconteceu durante as filmagens?

Não, antes, arriscando mesmo ser despedido. Mas não sou tolo, ninguém quer ser despedido de uma produção destas. Disse-lhes: 'Esta é a minha proposta', eles ouviram e aceitaram. Quis dar o meu cunho pessoal por ter consciência de que isto é um trabalho que vai ficar depois de morrer. É uma espécie de imortalidade esquisita, mas se alguma vez houve uma impressão digital que pudesse deixar neste mundo é isto.

Interessa-lhe o que pensam de si?

Pessoalmente não me interessa nada, mas é muito importante o que pensam do meu trabalho. Gosto quando oiço as pessoas dizerem 'não estava nada à espera de o ver fazer isto'. Já ouvi, em relação ao 'Virados do Avesso', coisas como: 'Então depois de Jesus vai fazer de homossexual? É um bocado esquisito'. É! Mas não tenho medo de me pôr em situações em que tenho de arriscar.

Uma ideia consensual é que é um homem bonito. Sempre teve consciência disso?

Nunca. Ainda hoje lido muito mal com a minha imagem ao ponto de só ter um espelho lá em casa: na casa-de-banho, e é só para fazer a barba. Detesto espelhos e aquilo que sinto que sou quando estou a falar com uma pessoa, depois não bate certo com o que vejo, por exemplo, em entrevistas gravadas.  Há actores que não gostam de se ver a trabalhar, eu gosto. Sinto-me mega-confortável a ver-me trabalhar um personagem, mas quando assisto uma entrevista, em termos de imagem aquilo que vejo não traduz a pessoa que sou. Não sei porquê, se calhar é um complexo qualquer que tenho de resolver.

Está a ser modesto?

Não é falsa modéstia, acho mesmo que está tudo doente. Muitas vezes oiço 'aquela mulher é linda' e eu não acho nada. Em vez disso, olho para outra, que a maioria não acha nada de especial, e digo 'Aquela sim, é do caraças'. Não tenho culpa de o meu conceito de beleza ser diferente do dos outros.

Não gosta de mulheres vistosas?

A histriónica e espalhafatosa é a última mulher para que olho. São as que acho sempre menos interessantes.

Que características valoriza?

Gosto de pessoas atentas ao mundo em que estão e também me interessam as suas prioridades. Em dez minutos de conversa com uma pessoa consigo perceber quais são as suas prioridades. Se é parecer que está bem ou se é certificar-se de que os outros estão confortáveis à custa do seu bem-estar. Isso define mais uma pessoa do que qualquer coisa que ela possa dizer.

Portanto é atento à comunicação não verbal.

É ao que dou mais importância. O que me dizem é lusco-fusco porque as pessoas estão sempre a projectar-se. A leitura da pessoa está nas coisas que não são ditas, mas estão claras nos gestos e atitudes que têm.

Ficou conhecido com o telefilme 'Amo-te Teresa'. Percebeu que era um trabalho que ia marcar as pessoas?

Não fazia ideia, nem sabia o que era um telefilme. Deram-me uma cena para fazer e disse que queria ler o guião todo. Aquilo entusiasmou-me e foi, talvez, dos poucos guiões que li de uma ponta à outra sem parar. Lembro-me de acabar e pensar: 'Filho da mãe do gajo que fizer este papel. Vai ter muita sorte'. Uma semana depois fiquei.

Achou que não ia ser escolhido?

Não tinha 15 anos, mas sim 18, era um tipo grande, alto. Pensei que queriam alguém com mais ar de miúdo.

Com o filme tornou-se uma figura pública de um dia para o outro. Como foi?

Foi um choque muito grande. Numa novela é progressivo, ali foi literalmente da noite para o dia. De repente era o miúdo do 'Amo-te Teresa', sabiam o meu nome na rua, tinham curiosidade em saber quem era. Foi com esse trabalho que senti, pela primeira vez, o carinho das pessoas.

Antes do filme, já tinha feito a telenovela 'Terra Mãe'. Sente-se em vantagem em relação aos colegas por ter começado muito cedo?

Só quis ser actor aos 21 anos, só nessa altura é que decidi profissionalizar-me. Por isso nunca pensei nesses termos. Aos 15 fui apanhado. Fiz um casting para ganhar uns trocos e comecei a trabalhar como modelo. Quando cheguei à novela não percebia nada do que estava a fazer, era tudo por instinto. E, em termos físicos, era violento: vivia no Fogueteiro, gravava em Alverca e terminava a altas horas da noite. Deixavam-me no Cais do Sodré, apanhava o barco e depois um autocarro para casa. Na manhã seguinte tinha aulas. Chorei muitas vezes nessa altura. Talvez por isso só tenha decidido ser actor mais tarde, já na fase da faculdade.

O que cursou?

Entrei para Estudos Artísticos, na Faculdade de Letras de Lisboa, mas não concluí. Apostei na formação a fazer workshops e não fui para o Conservatório porque sempre que alguém tentava racionalizar os meus instintos sentia que decrescia e começava a ficar com medo. Há coisas que não nasceram para serem explicadas, mas sim sentidas. Tive de perceber e de definir o que estava a sentir sozinho. Então investi em workshops porque nos laboratórios dão-nos uma situação e temos de reagir. Esse impulso, bem como assistir aos impulsos dos colegas perante o mesmo exercício, é do mais eficaz que há para mim. Cada actor deve encontrar o que é eficaz para si porque não há uma fórmula de sucesso.

Mas tornou-se um actor de sucesso…

Nesta profissão temos de estar sempre a provar. Somos tão bons como a última coisa que fizemos, logo o sucesso é muito relativo. O que sinto é que fui muito afortunado. Na minha vida toda, se estive sete, oito meses sem trabalhar foi muito.

É afortunado ou trabalhador convicto?

Sim, estou a ser extra humilde. Às vezes é sorte, mas na maioria das vezes é trabalho, porque quando não tenho nenhum projecto arranjo coisas para fazer, não estou à espera que o trabalho venha ter comigo. Sou um bocadinho workaholic.

Quando não tem trabalho, está a pensar no que vai fazer para trabalhar?

Vivo com a máxima 'se fazes o que gostas não tens de trabalhar uma única vez na vida'. Quando não tenho nada planeado, produzo peças e chamo malta que não está a fazer nada na altura. As peças que fiz, como 'Sexo e Batatas Fritas', 'Três na Mesma Cama' ou 'Pedras nos Bolsos' foram assim.

Tem vida para lá do trabalho?

Gosto de ir ao cinema, ao teatro, adoro estar em casa a ver séries e filmes…

Mais trabalho, portanto. Não tem luxos? Não aproveita as pausas entre filmagens para viajar, gozar o dinheiro que ganha?

Não sou fã de viagens, mas também já corri meio mundo a trabalhar. Quando fiz 'A Selva' [de Leonel Vieira] estive quatro meses na Amazónia e aproveitei para ir ao Peru, Bolívia e Chile. Na promoção de 'A Bíblia' e 'O Filho de Deus' conheci 25 estados americanos, na Europa já fiz duas longas em Espanha, conheço bem Inglaterra… As coisas levam-me a viajar. Se tiver seis meses livres e dinheiro, vou viajar? Não vou. Tenho mais gozo a gastar esse dinheiro numa curta ou numa peça de teatro. Há uns anos fui à República Dominicana com a Cátia [mulher] – o Santiago ainda não era nascido – e foi óptimo. Papo para o ar, sol, mergulhos, tudo muito relaxado. Ao fim da primeira semana estava com tiques nervosos.

E outros luxos?

Não sou nada dado a luxos. Onde talvez gaste mais dinheiro é com a casa, mas do ponto de vista do conforto, porque quero que o tempo que passo em casa seja de qualidade. É por essa razão que não vivo em Lisboa. Vivi uns seis meses perto do Rato e não gostei. O reboliço da cidade não me atrai. Calma, passarinhos, é disso que gosto.

Está há seis meses nos EUA a gravar a série 'The Messengers'. Que projecto é este?

É uma série da CBS para a CW e estreia em Fevereiro/Março. O mundo está à beira do Apocalipse e vai ser julgado através das escolhas de cinco mensageiros. A minha personagem chama-se The Man e representa toda a maldade do mundo, aquele que vai levar os mensageiros a cometerem erros e a desvirtuarem-se do seu caminho.

O oposto de Jesus. Foi calculado?

Foi.

Quer demarcar-se da imagem de Jesus?

Não. Se me chamassem outra vez para fazer de Jesus fazia se achasse que tinha sentido. Aceitei ser o The Man porque, mais uma vez, é o desafio que faz sentido agora.

Enriquece-se a fazer televisão nos EUA?

Estamos a falar de realidades incomparáveis. Nos EUA fazem-se séries que na sua maioria são distribuídas no mundo inteiro. Logo, o retorno reflecte-se no investimento das próprias séries e nos cachets dos actores. Por isso, sim, pode-se enriquecer, mas as variáveis são muitas.

Há uma ideia estereotipada da cultura americana. Está a dar-se bem por lá?

Os americanos têm muitas coisas boas. Uma delas, que nós não temos, é o facto de todos terem uma hipótese. Já estive em castings em que estava metade do elenco do 'Donas de Casa Desesperadas', dois putos do 'Glee' e, depois, 50 acabados de chegar à cidade. Mas estávamos todos na mesma sala. Quando me contrataram não me perguntaram 'És de que país?'. Sentiram que tinha um sotaque diferente, mas só quiseram saber que era a pessoa certa para o papel. Nunca acertam com o meu nome. Nunca. Dizem Diego, eu corrijo, Daiogo, volto a corrigir, mas não interessa. Não vão deixar de me contratar porque não sabem dizer o meu nome. Isto funciona para mim. As pessoas têm todas uma hipótese e as que têm valor vingam. É um país que recompensa os trabalhadores. Identifico-me com isso.

A sua família está consigo?

Sempre.

Como se pede a uma mulher para abdicar de tudo e ir viver para outro país?

Faz parte da gestão normal de uma relação. Ninguém abdica de nada, há formas de se fazer a coisa. Estive presente na antestreia do 'Virados do Avesso', com o Jorge Corrula a carregar-me via Skype num tablet.

O que o seduziu em 'Virados do Avesso'?

O Edgar Pêra [realizador], ser um filme português quando só se filma se houver subsídios e o facto de duas entidades privadas [Nos e Cinemate] se terem juntado para, com dinheiro próprio, fazerem o filme. Somos subsídio-dependentes, os produtores e realizadores estão-se a borrifar se fazem bilheteira ou não porque o filme está pago pelo subsídio. O cinema português é isto há anos e eu sempre defendi que é possível termos um mercado. Se há 500 mil pessoas que vão ver um filme de super-heróis por que não virem ver um português? Toda a gente diz 'Portugal é muito pequenino', é verdade. Então dêem-me só esses 500 mil, só esses são cinco vezes mais do que o filme português mais visto de sempre. Há uma discrepância gigantesca e algo não está certa porque o público está lá. Não o vão é buscar.

É este filme que vai fazer isso?

Não sei. Mas se temos um '7 Pecados Rurais' que fez o que fez [324 mil espectadores] há forma de agarrar o público, de os fazer perceber que o cinema português é divertido e vale a pena. Não vão sair da sala a dizer 'ai não percebi nada'. Só podemos dar valor ao cinema de autor se tivermos o mainstream, as comédias, os romances… Todo um leque de coisas a acontecer. Não há é muitos produtores e realizadores com vontade de fazer isto. O Edgar Pêra, um cineasta de vanguarda, teve a coragem de emprestar o seu nome para, também ele, ir à aventura. Isto é o que o cinema português precisa, juntar o que de melhor tem, sem divisões.

É verdade que baixou o seu cachet?

Baixei por acreditar que é possível. Se me chamam para um projecto destes, não o posso fazer por dinheiro. Faço por convicção. Se a minha participação pode ajudar, tenho a obrigação moral de o fazer. Ando há anos a dizer que é possível, se não o fizesse estaria a virar costas a mim próprio.

Há quem não possa baixar o cachet.

Podem sim! Se os actores que passam de novela para novela a fazerem sempre a mesma coisa estivessem mais investidos em fazer diferente, podiam baixar o cachet quando os projectos valem a pena. Mas não o fazem. Se a prioridade for criar um mercado toda a gente vai ceder. Quando um senhor chamado Nicolau Breyner disse 'vamos fazer uma novela', toda a gente achou que era maluco. Mas se ele não tivesse acreditado, hoje não tínhamos a indústria que temos. Até ganhámos Emmys e tudo.

Quer estar cá quando o cinema nacional se tornar uma indústria?

Mais do que querer, vou estar cá. Temos das histórias mais fascinantes do mundo. Nós e os espanhóis descobrimos meio mundo e é uma vergonha que não haja um filme que conte algumas dessas histórias. Os americanos com 500 anos esmiúçam a história deles. Não estou a comparar, mas há um sentido patriótico que nos está a faltar. Toda a gente ficou espantada por um português fazer de Jesus, a falar inglês. Porquê? Não é uma pessoa como as outras? Há a ideia de que somos pequeninos e não deveria ser assim. Somos iguais aos outros. Quando fui estudar realização para Los Angeles fui aos estúdios da Warner e vi os cenários do Homem Aranha e lembro-me de pensar: 'Olha, é esferovite. Há à venda disto no Ikea'. Por isso digo que vou ajudar para que as coisas mudem. Nem que morra a tentar.

alexandra.ho@sol.pt