Uma aristocracia na democracia

O regime democrático iniciado em 1974 dispõe já de uma legião de condecorados com os graus das várias ordens honoríficas. Todos os anos há verdadeiras levas de pessoas distinguidas. Mas também houve quem recusasse a distinção. Lembro-me de José Manuel Tengarrinha, líder do extinto MDP/CDE, me ter telefonado um dia a dar em primeira mão…

O meu pai foi outro dos que não aceitaram. Escreveu uma curta carta pessoal ao então Presidente da República, Ramalho Eanes – da qual me mostrou o original, escrito à mão – explicando-lhe as razões da recusa. Achava ele que isso era contraditório com os próprios princípios do regime democrático, segundo os quais os cidadãos são todos iguais. As condecorações – dizia o meu pai – criam uma espécie de nobreza, de casta, dentro da democracia, que é incompatível com o seu espírito.

Também já muitos jornalistas foram agraciados pelo regime. Em todas as redacções há ‘comendadores’ e ‘comendadoras’, facto que me faz alguma confusão. O jornalista é alguém que tem de ser completamente independente – e a condecoração pode ser uma limitação. 

Recorrentemente tenho elogiado Cavaco Silva, lembrando a sua importância na história recente do país, quer como Presidente quer como primeiro-ministro. Ora, se tivesse sido condecorado por Cavaco, não me sentiria tão à vontade para o elogiar. Pareceria o pagamento de um favor. A retribuição de uma gentileza. 

Felizmente, nunca fui sondado para qualquer condecoração. Apesar de ter  dirigido durante 23 anos o maior jornal de referência do país, que nesse longo período manteve uma independência e um prestígio reconhecidos por (quase) todos, tendo triplicado as vendas e a influência. E, depois de sair, participei com colegas de profissão na fundação de outro semanário, cuja qualidade e coragem está à vista de toda a gente.

É certo que, se tivesse havido a iniciativa de me condecorarem, não aceitaria. Mas teria a oportunidade de explicar as razões da recusa… 

Quando o meu pai falou de uma nova ‘nobreza’ no regime democrático, estava longe de saber até que ponto essa ideia se tornaria real. E não só – ou nem tanto – por causa das condecorações. A verdade é que, em muitos outros campos, está a criar-se um fosso entre uma classe de privilegiados e ‘os outros’. Ouso mesmo dizer que, em certas áreas da sociedade, há hoje no regime democrático privilégios muito mais chocantes do que havia no tempo do salazarismo. 

Lembro-me de, na escola primária que frequentei, andarem filhos de ricos e de pobres. De doutores e de empregados do lixo. De nobres (tinha um colega filho de um visconde) e de gente de pé descalço. Ora, isso é hoje impensável. Há as escolas dos ricos e as dos pobres. Ninguém da classe média manda o filho para uma escola do Estado. A estratificação começa logo no ensino básico – e é decisiva, pois deixa marcas e vai projectar-se pela vida fora.

No liceu D. João de Castro, que frequentei, acontecia o mesmo. É certo que havia as chamadas Escolas Técnicas, para onde iam em geral os filhos de pessoas mais modestas. Mesmo assim fui colega no liceu de filhos de ministros e banqueiros mas também de filhos de famílias remediadas. E essa convivência foi também para mim fundamental. Era uma aprendizagem – uma aprendizagem da democracia.

E noutros campos, como o futebol, sucedia o mesmo.

No estádio sentavam-se lado a lado o rico e o pobre. Claro que, como em qualquer espectáculo, havia bilhetes mais caros e mais baratos, desde o peão à bancada central, mas na bancada dos sócios do clube, por exemplo, não havia distinções. Sócio era sócio – fosse o varredor ou o doutor. E todos nos sentávamos nos bancos de pedra, pois ainda não havia cadeiras. Todos estavam no mesmo plano, a comungar as mesmas alegrias e tristezas em pé de igualdade.

Ora hoje é aqui, nos estádios de futebol, que se observa uma forma chocante de estratificação de classes. A ‘nobreza’ e o ‘povo’ já não se misturam. Os vips vão para luxuosos camarotes onde são servidas lautas refeições antes dos jogos. Há empregados fardados a servir à mesa, e mesas postas com todas as iguarias: mariscos à descrição, saladas, salgados diversos, óptimos queijos, doces, vinho, whiskies, eu sei lá! Faz doer, no fim dos jogos, ver os despojos daquelas mesas: quantidades enormes de comida vão para o lixo, porque a abundância é sempre superior ao apetite dos senhores.

E que dizer dos aviões alugados para transportar os ditos convidados vip para assistir aos jogos das equipas portuguesas no estrangeiro? Olha-se para aquilo e também assusta – se pensarmos naqueles que vivem com dificuldades. Ainda por cima, alguns desses vips que usufruem de privilégios pelo simples facto de serem vips são capazes de ir depois para as televisões falar das desigualdades…

Não sou miserabilista e até já defendi os ‘ricos’ nestas páginas. Mas defendi os ricos que produzem, que contribuem para a riqueza do país, que criam emprego, que investem e correm riscos. 

Os ricos como Bill Gates, Belmiro de Azevedo ou Soares dos Santos, que tiveram engenho e iniciativa, que foram visionários. E que, sendo muito ricos, são senhores de ‘fortunas virtuais’ – pois o seu dinheiro está circular, não está metido debaixo do colchão, serve para investir, para pagar salários, para criar mais riqueza. 

São ricos que fazem uma vida não muito diferente da minha ou de qualquer outra pessoa da classe média: vestem-se normalmente (não se cobrem de ouro), trocam de carro quando é preciso e viajam muitas vezes em classe económica. Como sabem dar valor ao dinheiro, não o esbanjam…

Criticável é a classe dos novos-ricos da democracia, que se banqueteiam antes dos jogos, entram no estádio por outra porta, voam em aviões com tudo pago para assistirem a duas horas de futebol que poderiam ver pela TV. Aqui sim, há esbanjamento, pois todo este circo não produz nada. Aqui sim, há ostentação. Aqui sim, não há espírito democrático.

Quando falou de uma nova casta na democracia, o meu pai não sabia deste fenómeno de novo-riquismo no futebol. Mas acertou em cheio.

jas@sol.pt