Atenção: este jogo está comprado

No último mês de Agosto algumas casas de apostas online acompanharam minuto a minuto um jogo de preparação entre o Freamunde e os espanhóis do Ponferradina. Terminou com a derrota do conjunto português (1-2). Parecia apenas mais um teste de pré-época, mas foi muito mais do que isso. Afinal, o Freamunde não perdeu. Nem sequer…

“Ligaram-nos no próprio dia a perguntar se estávamos a fazer o jogo, mas nós tínhamos chegado madrugada dentro do Algarve, onde fomos jogar com o Portimonense para a Taça da Liga”. O presidente do Freamunde, Manuel Pacheco, afirma ter sido apanhado de surpresa por este esquema: “Não fazia ideia de que estas coisas podiam acontecer, mas depois do que se passou comecei a informar-me e parece que é um fenómeno muito entranhado em vários países”.

Os ‘jogos fantasma’ são uma das formas de match-fixing (jogos manipulados) utilizadas por grupos de crime organizado que fingem ou adulteram resultados para conseguirem elevados lucros no mercado das apostas desportivas. Não foi a primeira vez que se conheceu um caso de um jogo simulado. Já antes, a 16 de Novembro de 2012, o mesmo se passou com um suposto amigável entre as selecções de sub-21 de Turquemenistão e Maldivas. O resultado final foi de 3-2, mas apenas na internet. 

O método desta burla é muito simples: um servidor informa sobre os jogos em que se pode apostar, as casas de apostas não filtram essa informação e disponibilizam os jogos para os seus utilizadores. Foi assim que apareceu o Freamunde-Ponferradina. A Liga Espanhola de Futebol Profissional usou o caso para sublinhar a “vulnerabilidade das casas de apostas”. No site da comunidade da Betfair ainda se pode ler um comentário de um utilizador sobre este episódio: “Parece que o jogo não existiu e a Betfair aceitou apostas. E agora? O que vão fazer com o dinheiro que foi apostado neste ‘jogo fantasma’?”.

Emanuel Medeiros, CEO do Centro Internacional para a Segurança no Desporto (ICSS), lembra que situações como esta podiam ser evitadas se as casas de apostas “usassem os resultados oficiais das competições, fornecidos pelas instituições que as organizam [ligas ou federações], em vez de os procurarem de forma avulsa”. “As casas de apostas recusam-se a reconhecer que os resultados dos jogos têm titulares para não pagarem uma taxa justa e legítima a essas instituições. Como qualquer cidadão pode ir a um jornal consultar um resultado de determinado jogo, eles também têm os seus meios de informação. Mas não é uma informação oficial e rigorosa. E não evita as tentativas de manipulação do sistema, como aconteceu com esse jogo”, sublinha o responsável do ICSS. 

Chineses mandam no Atlético 

O match-fixing também pode ser levado a cabo por alguns investidores que aparecem no futebol. Emanuel Medeiros salienta que alguns grupos criminosos constituem “testas de ferro e empresas de fachada” que procuram ter o controlo e a gestão de determinados clubes “para efectuarem lavagem de capitais e viciação de resultados”.

Uma dessas suspeitas recai sobre a Sociedade Anónima Desportiva (SAD) do Atlético Clube de Portugal. O emblema lisboeta passava por grandes dificuldades financeiras até que o empresário chinês Eric Mao, detentor da Apping Football Club Limited, comprou 70% da SAD, por 175 mil euros, prometendo formar uma equipa para subir à 1.ª Liga, com a garantia de que o dinheiro não seria problema. A realidade, porém, tem sido outra. A direcção do clube presidido por Almeida Antunes acusa a nova administração da SAD de não cumprir com o acordo parassocial e de nem sequer pagar renda, água e luz. Além disso, os chineses tomam todas as decisões relacionadas com o futebol profissional sem prestar qualquer esclarecimento ao presidente do Atlético. “Conhecemos três ou quatro jogadores dos 34 ou 35 que formam o plantel”, assegura Almeida Antunes. Todos os outros foram contratados por Eric Mao.

Os jogos de pré-época do Atlético estão a ser investigados por alegações de manipulação de resultados e a Antena 1 garantiu que dois dos reforços têm um passado de match-fixing: o médio Ibrahim Kargbo, da Serra Leoa, e o guarda-redes Igor Labuts, da Letónia. O primeiro foi suspenso da selecção do seu país por suspeitas de ter ajudado a viciar três jogos quando jogava no Baku, no Azerbaijão. O segundo tem uma “longa história de viciação de resultados desportivos em prol das apostas”, refere a Antena 1. No entanto, ambos continuam no plantel. Durante a última pré-temporada, o Atlético usou mais de 40 jogadores e alguns estiveram na equipa menos de 24 horas.

Almeida Antunes sente “uma revolta do outro mundo por ver o nome do clube associado a estas práticas”, mas diz estar “de mãos atadas”. “Os jogadores chegam aqui, são inscritos, com suspeitas de outras situações, e nós não participamos em nada. A actual administração não nos passa cartão sobre os jogadores contratados. O Atlético é o clube que inscreveu mais jogadores até agora”, lamenta.

Oliveirense no radar 

Na época passada a Oliveirense também foi associada a casos de resultados viciados. A Federbet, organização que monitoriza a actividade das casas de apostas, registou “movimentações estranhas” em três jogos da II Liga que o clube nortenho perdeu: Oliveirense-Benfica B (1-2), Trofense-Oliveirense (3-0) e Portimonense-Oliveirense (1-0).

Para a Federbet, estes jogos foram claramente viciados, mas logo na altura o presidente da Oliveirense, José Godinho, garantiu que o clube “jamais estaria envolvido neste tipo de situações”. Contactado pela Tabu, o dirigente voltou a defender que as suspeitas são infundamentadas. “A Liga abriu um processo de inquérito, chamou jogadores, treinadores e presidentes das equipas envolvidas. Também já fui ouvido e disse sempre a mesma coisa. Nada disso é verdade”. Apesar de assegurar que a Oliveirense está inocente, José Godinho não arrisca falar de outros clubes portugueses: “Não posso pôr as minhas mãos no lume pelos outros”.

Na verdade, ninguém pode. Em Setembro de 2013, a Europol desmantelou uma rede que viciou 680 jogos entre 2008 e 2011 (380 na Europa e 300 em África, Ásia e América Central e do Sul). Foram identificados 425 oficiais em 15 países (árbitros, dirigentes, membros das organizações futebolísticas), jogadores e outros suspeitos. Ao todo, 50 pessoas acabaram detidas. Entre os jogos manipulados, estavam até encontros da Liga dos Campeões, Liga Europa e qualificações para o Mundial e Europeu. Os dados apresentados mostram que o match-fixing é um problema global e que nenhuma competição está a salvo. Seja no futebol português, seja em campeonatos milionários como o inglês, o alemão ou o italiano. Mas tudo começa na Ásia.

O sindicato de Singapura 

Hong-Kong, Macau, Manila e Singapura são o centro da fraude desportiva e o berço da maior rede de crime organizado das apostas de futebol. O singapurense Tan Seet Eng, conhecido como Dan Tan, revelou-se o cabecilha da organização desmantelada pela Europol. Wilson Raj Perumal, também natural de Singapura, era um dos seus fiéis colaboradores. Os dois fixers (manipuladores de jogos) mais conhecidos em todo o mundo iniciaram a actividade através de Frankie Chung, uma verdadeira lenda entre os manipuladores da Ásia. 

Os ensinamentos deste empresário indonésio-chinês permitiram que homens como Dan Tan e Perumal viciassem mais de 70% dos jogos da liga de Malásia e Singapura (os dois países disputam o mesmo campeonato) durante a década de 90. A fraude foi tão violenta que a liga entrou em colapso. É nesta altura que o sindicato de Singapura pensa em tornar-se internacional. Mas para isso precisa de aliados: grupos mafiosos dos Balcãs, elementos com ligações às tríades chinesas e colaboradores vindos do mundo do futebol.

Com a rede montada e distribuída por todo o mundo, os homens de Singapura começaram a ganhar fortunas utilizando o mercado ilegal de apostas da Ásia, sendo este o maior obstáculo para as autoridades que tentam acabar com o match-fixing. O mercado asiático é o maior do mundo, mas desconhece-se a sua real dimensão, uma vez que essas casas não estão ligadas ao sistema de alerta da FIFA ou aos organismos de monitorização de apostas desportivas. Ou seja: funcionam abaixo do radar. Com outra particularidade: as apostas são anónimas e só podem ser feitas pelos agentes de apostas (quase sempre homens de origem asiática, estando alguns deles a trabalhar directamente com as redes de match-fixing). 

Buffon e companhia 

Os europeus que queiram apostar na Ásia só precisam de encontrar alguém com acesso a um destes agentes de apostas. Foi o que aconteceu com Gianluigi Buffon, Gennaro Gattuso e Fábio Cannavaro. u Os três internacionais italianos foram envolvidos num escândalo de apostas que abalou o calcio em 2011. Os seus nomes apareceram nas escutas telefónicas a Nicola Santoni, ex-jogador e preparador físico de algumas equipas italianas: “O futebol está cheio de manhas, está todo viciado. O Buffon joga entre 100 a 200 mil euros por mês. Ele, o Gattuso, o Cannavaro… Estão doentes!”, referiu Santoni numa chamada citada pela Gazzetta dello Sport.

Buffon reagiu dizendo que faz o que quiser com o seu dinheiro: “Posso comprar relógios, terra ou até dá-lo a um amigo. Não tenho de justificar nada”. A Procuradoria responsável pelo caso decidiu não investigar os jogadores por considerar que o facto de apostarem em jogos não provava que estavamenvolvidos na manipulação de resultados. Mas há outra versão defendida pela comunicação social italiana: Buffon, Gattuso e Cannavaro tornaram-se heróis nacionais depois de serem campeões do mundo em 2006 e existiram várias pressões (desde os seus clubes à Federação Italiana, passando pelo próprio Governo) para que não fossem associados a este escândalo. Cristiano Doni não teve a mesma sorte. O antigo capitão da Atalanta foi um dos 17 acusados e admitiu ter participado no arranjo de jogos.

Outro dos detidos foi Marco Paoloni. O antigo jogador da Cremonese ocupava uma posição privilegiada: guarda-redes. Ninguém melhor para decidir o rumo de um jogo. Uma falha sua significa um golo. Paoloni tinha um bom contrato, mas gastava mais do que recebia em apostas desportivas. Os manipuladores estavam atentos e fizeram-lhe uma proposta: as suas dívidas seriam perdoadas se ajudasse a viciar alguns jogos. Paoloni garante que começou por mostrar resistência, mas acabou por ceder quando ele e a sua família foram ameaçados.

Os avisos das redes de match-fixing são para levar a sério. Aqueles que saem da linha acabam fora-de-jogo. Literalmente. Foi o que aconteceu com Kevin e Cici, um casal de estudantes chineses da Universidade de Newcastle, em Inglaterra, que foi brutalmente assassinado em Outubro de 2008. Os dois trabalhavam na organização de apostas de futebol com agentes asiáticos. Recebiam dinheiro de apostadores europeus e cobravam uma taxa inferior à da concorrência. Estavam a fazer muito dinheiro, que não ia para os bolsos do crime organizado, e foram usados como exemplo.

“A Cici tinha as mãos atadas atrás das costas. Foi morta com um machado. O Kevin tinha mais de 70 feridas na cara e na cabeça. Cortaram-lhe a garganta de uma orelha à outra”. O inglês Steve Wade, investigador criminal responsável por este caso, lembrou na altura que já tinha estado envolvido em mais de 100 investigações de homicídio, mas raramente viu aquele nível de violência: “Até torturaram o gato da família. Foi afogado num balde na casa de banho”. 

As contradições da FIFA 

Homicídios, ameaças e corrupção. O crime organizado está a apoderar-se do futebol e a manipular jogos em todo o mundo. Em 2009, na Alemanha, o sindicato de Singapura e os seus aliados pagaram subornos na ordem dos 2 milhões de euros e tiveram lucros superiores a 8 milhões apenas com jogos germânicos. Em Inglaterra, um arranjador singapurense foi apanhado a dizer o preço dos intervenientes do jogo: “Cerca de 83 mil euros por cada jogador da Premier League, 60 mil euros para um da segunda divisão e 24 mil euros para os árbitros”.

A FIFA garante que o combate ao match-fixing é a sua prioridade e anunciou que iria doar 20 milhões de euros à Interpol para criar uma unidade anticorrupção sediada em Singapura, o centro de todo o problema. O organismo presidido por Sepp Blatter já frisou várias vezes que irá fazer tudo para defender a integridade das competições, mas há quem contrarie esta versão. Terry Steans trabalhou dois anos na FIFA como investigador anti match-fixing e saiu em 2012 por falta de recursos: “Éramos apenas quatro investigadores de manipulação de jogos para 209 federações e um problema global”. 

Em Junho deste ano, numa entrevista ao The New York Times, Steans lembrou que a FIFA precisa de ter, pelo menos, dez investigadores a trabalhar a tempo inteiro na monitorização de jogos viciados e dois departamentos por cada uma das seis confederações que compõem o organismo: “É necessário que os investigadores locais estejam no terreno. É necessário falar com as fontes pessoalmente para ter informação em tempo real que permita combater a manipulação antes de o resultado ser viciado”.

Para este inglês, só assim se podem evitar acontecimentos como os ocorridos num “estranho torneio” organizado pelo sindicato de Singapura, em Fevereiro de 2011, em Antália, na Turquia. Contou com a participação das selecções de Estónia, Bulgária, Bolívia e Letónia. Uma competição feita apenas para a fraude das apostas: “Quatro jogos internacionais. Não venderam bilhetes, não deixaram os adeptos entrar e não houve transmissão televisiva. Mas compraram os árbitros e fizeram milhões no mercado ilegal da Ásia. É muito descaramento”. Todos os sete golos do torneio foram marcados de penálti. Todos os penáltis foram assinalados pelos árbitros do sindicato.