Pleonasmos

Entre as dezenas de e-mails que recebo diariamente, a maior parte tem um destino óbvio: o caixote do lixo. Será assim com toda a gente. Mas há alguns que guardo, como foi o caso deste.

O texto começava assim: “Quase todos os portugueses sofrem de pleonasmite, uma doença congénita para a qual não se conhecem nem vacinas nem antibióticos”. A seguir, o autor apresentava exemplos clássicos: “Subir para cima” ou “sair para fora”.

Sobre isto, ninguém tem dúvidas. Mas há casos menos óbvios, cascas de banana em que todos escorregamos. Por exemplo: “recordar o passado”. Ou estar atento aos “pequenos detalhes”. Ou partir uma laranja em “metades iguais”. Ou ainda, dar os “sentidos pêsames” à “viúva do falecido”.

Em relação às duas últimas, podemos entretanto ter dúvidas. É certo que ‘pêsames’ significa ‘condolências’, tristeza por aquilo que se passou. E se uma pessoa está triste é porque ‘sentiu’. Mas ‘sentidos pêsames’ reforça a ideia de que a pessoa sente verdadeiramente o que se passou e não está a cumprir apenas uma formalidade. Portanto, é aceitável.

Também fazer referência à ‘viúva do falecido’ pode parecer redundante, mas não é completamente estúpido. Na verdade, poderíamos dar também os pêsames a outra viúva (uma cunhada do defunto, por exemplo). Quando dizemos ‘viúva do falecido’ não existem quaisquer dúvidas. 

O texto fala de outros pleonasmos, como “opinião pessoal”. E aqui estou totalmente de acordo. Nas televisões estamos constantemente a ouvir esta patetice. Aliás, há outras do mesmo género, particularmente irritantes, que se ouvem a toda a hora: “Na minha opinião”, “Eu penso que”, etc. Ora, se uma pessoa está a comentar alguma coisa, é evidente que  dá a sua opinião. Com uma agravante: frequentemente ouvem-se fulanos dizer “Eu penso que…”, e a seguir debitam uma completa vulgaridade, que está farta de ser dita. 

O e-mail em causa dá muitos outros exemplos de pleonasmos, tais como “factos reais”. De facto, trata-se de uma tontice. ‘Factos’ são, por definição, ‘reais’. E inquestionáveis. Daí, aliás, a expressão “Contra factos não há argumentos”. Ou seja, contra a ‘realidade’ não vale a pena filosofar.

O “aviso prévio” é outra parvoíce chapada! Um ‘aviso’ é por definição ‘prévio’. Não há avisos a posteriori! A propósito, lembro-me do filme Malteses, Burgueses e Às Vezes, de Artur Semedo, em que uma das personagens mais cómicas era um arrumador de barcos que tinha sido reciclado em arrumador de carros. E que ajudava os automobilistas, dizendo: “Pode vir! Pode vir! Pode vir!…”. Nisto, o carro batia violentamente no veículo de trás – e o arrumador concluía, com ar profissional: “Tá bom!”.

Outro disparate é dizer “todos sem excepção”. 

Mas esta expressão recorda-me outra que ninguém considera disparatada e está perfeitamente vulgarizada, sendo repetida em congressos, em intervenções públicas de vários tipos, etc., que consiste no orador dirigir-se à audiência dizendo: “Boa tarde a todos!”. Ora, é evidente que o ‘todos’ não faz o menor sentido. O orador não iria dirigir-se só a ‘alguns’ na sala. Portanto, “Boa tarde” bastaria. E seria mais bonito. Mas ninguém resiste a dizer o parolo “Boa tarde a todos!”.

O e-mail  que venho a referir critica ainda expressões como “ofertas gratuitas”. De facto, seria uma verdadeira originalidade conseguir fazer ‘ofertas pagas’. Já outra expressão citada, “cidades do mundo”, não me parece totalmente descabida. Ao dizer-se ‘cidades do mundo’, está a querer significar-se que não são ‘cidades de Portugal’. 

Outro pleonasmo apontado no texto é “certeza absoluta”. Confesso que detesto a expressão, mas percebo-a: a verdade está tão maltratada nos dias de hoje que muitas ‘certezas’ começam a ser ‘relativas’. Dizer só “tenho a certeza” deixa no ar algumas dúvidas. Assim, o acrescento da palavra ‘absoluta’ reforça a convicção de quem tem a certeza. Mesmo assim, sabemos como muitas ‘certezas absolutas’ se esfumam em nada…

Também é discutível que seja incorrecto dizer “principal protagonista”. E isto porque um filme ou uma peça de teatro podem ter dois (ou mais) protagonistas destacados. Ao falar-se no ‘principal’, está a acrescentar-se qualquer coisa ao ‘protagonista’. 

Já a expressão “surpresas inesperadas” não tem qualquer cabimento. Surpresas são surpresas – e só o são por serem inesperadas. Do mesmo modo, a frase “estreia pela primeira vez” não faz nenhum sentido. Ou ‘estreia’ ou ‘não estreia’. Não há duas interpretações possíveis.

Inversamente, não creio que a expressão “veja com os seus próprios olhos” seja errada. É uma liberdade oratória, se se quiser. Que reforça a ideia de que há uma coisa extraordinária que a pessoa deve ver – não devendo contentar-se com as descrições de terceiros. 

Em contrapartida, “relações bilaterais entre dois países” é uma asneira. Na frase “Portugal e França estabeleceram relações bilaterais entre os dois países” as últimas palavras estão obviamente a mais e só um jornalista distraído as pode escrever ou dizer (infelizmente há muitos).  

Casos completamente diferentes são expressões como “viver a vida” ou “sorriso nos lábios”. Trata-se apenas de ‘meios pleonasmos’. Uma pessoa pode ‘viver’ intensamente não a ‘vida’ mas apenas um acontecimento. Quando se diz ‘viver a vida’, quer significar-se ‘toda a vida’ da pessoa. 

Quanto ao ‘sorriso nos lábios’, é preciso dizer que há sorrisos que não se fazem com os lábios. Pode sorrir-se com os olhos, por exemplo. Há olhos que sorriem e olhos que choram… Portanto, um ‘sorriso nos lábios’ tem geralmente um significado próprio: é um sorriso de desdém, pouco genuíno.

Outra expressão como “arde em chamas” também não é completamente desajustada, pois existe a ‘combustão lenta’ (que é arder sem chama). E aqui vem à cabeça a célebre estrofe “amor é fogo que arde sem se ver”…

Já dizer “habitat natural”, “adiar para depois” ou “encarar de frente”, é uma pura manifestação de analfabetismo. 

Finalizo com uma expressão muito curiosa: “Já agora”. De tanto ser usada, ninguém a põe em causa. Mas as palavras ‘já’ e ‘agora’ querem dizer o mesmo, pelo que juntá-las não faz nenhum sentido. Mas não sejamos mais papistas que o Papa – e, ‘já agora’, deixemos esta expressão passar… 

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