Porquê a escolha de uma personagem com trissomia 21, a Hanna?
Há quase uma década que estou ligado a uma cadeira de reabilitação psicomotora. Felizmente – mesmo, porque é uma experiência extraordinária – tenho contactado com várias pessoas com trissomia 21 e outros tipos de deficiência. E tenho feito trabalho com a Crinabel e com a Dançando com a Diferença ao nível das artes. É qualquer coisa de encantador e que ao mesmo tempo nos faz rever uma série de ideias. Por exemplo, um menino muito competitivo junto de meninos com trissomia 21, perde normalmente o instinto matador. Mas a Hanna nasceu de uma forma natural.
'Uma Menina' é uma alegoria ao séc. XX, no qual Hanna representa a inocência perdida? Ou isto é um disparate?
(Risos) Às vezes há interpretações completamente fora ou excessivas, mas essa não é estranha. Uma das coisas estranhas do livro é que alguém que está com pressa pára para ajudar a menina perdida, contra todas as previsões. A Hanna não está perdida no espaço, mas no tempo, e Marius também pode estar a ser perseguido pela memória, ou seja, pelo tempo. Eu não sei muito mais do que está no livro. Não sei se está a fugir de alguém ou de alguma coisa que fez.
É curioso o autor dizer isso.
Estou agora a pensar. O facto de a Hanna ter trissomia 21 e estar perdida é uma dupla fragilidade. Ainda há pouco tempo estive perdido e pode ser uma situação constrangedora, pelo menos. Alguém que tem essa incapacidade de se defender…
E para mais não pode dizer o nome do pai.
Também não fica claro se tem mesmo um pai. Tal como o Marius aparece e desaparece sem sabermos de onde, o mesmo acontece com ela, são duas personagens muito próximas.
Pelo meio vamos conhecendo uma série de figuras fantásticas. E nelas há o denominador comum da memória.
Quase todas as personagens querem dar um passo ao lado em relação aos acontecimentos. Há uma menina perdida no século e há uma série de homens que querem alhear-se do século. O Vitrius tem um hobby meio louco que faz com que nem pense no que está a acontecer, na violência do mundo. O Agam, o artista que escreve coisas mínimas e tem um olho muito vermelho, tem um olho virado para o mínimo, para o privado, e outro para os grandes acontecimentos. Nós temos um momento em que olhamos para o exterior e outro em que olhamos para o privado. Nós não aguentaríamos estar sempre a olhar para o século.
Este romance é muito visual.
Marius e Hanna são actores, mas também espectadores. É uma fuga e uma procura estranha.
Já em Os Velhos Também Querem Viver a procura é outra.
Esta micronovela, com um tom de poesia, parte da peça clássica de Eurípides, Alceste, e o tema principal é sobre o sacrifício. É interessante ver como os clássicos estão a falar já do nosso tempo. Parece que estão a falar da Segurança Social portuguesa. Aqui a questão é o não respeito pela velhice. O Admeto está a morrer e o deus Apolo concede-lhe a vida se alguém se sacrificar por ele. Admeto vai perguntar aos pais se se sacrificam por ele. E o pai e o filho têm uma discussão, na qual o pai argumenta que a vida dele vale tanto como a do filho. Há aqui um conflito de gerações, pegando em Eurípides e ao falar da actualidade: os jovens de 20 anos sentem que a sua vida é mais valiosa do que a de uma pessoa de 80.
Não são só os jovens, é a mensagem da sociedade.
Por muito humanistas que sejamos colocamo-nos instintivamente a dizer que a vida de 20 anos vale mais. Mas o pai de Admeto diz que uma vida é igual à outra. Por exemplo, neste tempo de crise pergunta-se onde se tira mais os apoios sociais. Já ouvi em fóruns de rádio jovens a defender que os reformados não precisam de tanto dinheiro. Este ponto liga os dois livros: uma vida é uma vida, quer se esteja numa cadeira de rodas, quer se tenha 20 ou 90 anos. De certa maneira começamos a perder a humanidade quando começamos a hierarquizá-la. Há um discurso do presidente da Associação de Médicos Nazis, em que este faz uma hierarquia dos alunos por deficiência, ao dizer quanto custa cada um ao Estado. Há depois consequências, que são violentas. As primeiras pessoas a sofrer com a crise são as pessoas com deficiência.
A actualidade é uma base boa para levar para os romances?
O que é actual? Há coisas aparentemente actuais hoje e que passados uns dias são para esquecer. A mim interessa-me perceber os comportamentos humanos.
Afirmou um dia que tem livros que demoram muito a escrever e outros menos. Como foi com estes dois?
Todos demoram muito tempo. 'Uma Menina' foi muito maturado, até tinha uma estrutura diferente de início, isto é, há vários anos. Tenho esta coisa de não publicar depois de escrever, passam-se vários anos.
Guarda-o na gaveta por um, dois anos, e depois volta ao texto. É este o processo?
Tem no mínimo anos de espera, mas não segue uma lógica racional. Há por um lado esta ideia de não publicar depois de escrever e depois há uma necessidade instintiva de voltar a um livro e não a outro.
São agora 33 os livros publicados. Quantos estão na gaveta?
Não sei, nem penso nisso. Gosto só de pensar no que existe em concreto. Enquanto não são finais são como que coisas meio espirituais, prefiro pensar no que está presente. Há uma separação completa entre o escrever e o publicar. Há o mundo da escrita e o mundo da publicação e gosto de ter estes espaços separados.
Escreve de manhã e edita à tarde textos anteriores, por exemplo?
Escrevo quase sempre de manhã, mas de vez em quando também à noite. Há alturas do dia em que sinto um pico de energia mais do fazer e alturas em que é mais de refazer. No meu caso o que eu refaço não é sobre o que eu escrevo de manhã. Descanso do trabalho fazendo um outro. Só estamos fatigados quando estamos a fazer a mesma tarefa. Quando eu mudo de tarefa posso recuperar a energia.