“Os livros são uma excepcional magia portátil”. Desde 1972 que Stephen King pensou em reescrever um dos episódios mais decisivos da história da América. E se Kennedy tivesse sobrevivido? E se um homem conseguisse viajar no tempo e matar Oswald antes do atentado? Questões obsidiantes, até terminar, em 2011, um romance com cerca de 900 páginas e um mirabolante enredo de ficção científica. 22/11/63 obrigou os críticos a dar de vez a King o pódio de um grande autor, deslocando-o estrategicamente do (menosprezado) género de terror para o do romance especulativo e da alt-fiction (ficção histórica alternativa, bem exemplificada também em Uma História Por Contar, a reinvenção do destino da princesa Diana assinada por Monica Ali).
Em 2013, King publicou Doctor Sleep, a sequela bizarra de The Shining (o seu primeiro best-seller, em 1977, por cá traduzido A Luz ou A Casa do Horror), habitada por um bando de vampiros que se alimentam da energia psíquica das criancinhas. O regresso ao thriller não beliscou os novos tempos de glória do escritor, que, em 2014, se estreou no policial hard boiled com Mr. Mercedes, primeiro de uma trilogia protagonizada pelo detective reformado Bill Hodges. Stephen King é hoje um “fantasista visionário” (New Yorker), seguido pelos professores de escrita criativa (expôs os seus conselhos e repugnância pela voz passiva no ensaio Escrever) e reconhecido pelo establishment (em 2003, recebeu a Medal for Distinguished Contribution to American Letters pela National Book Foundation). 22/11/63, recém-lançado em Portugal, mostra-o em pleno fôlego no seu jogo de gato e rato com os medos e tiques da classe média americana, desta vez concentrados no final da década de 50.
Jake Epping, professor de Inglês em Lisbon Falls, comoveu-se com a composição em que Harry, o contínuo coxo, apelidado de Sapo, relatou o dia “em que o meu pai açacinou a minha mãe e os meus dois irmãos e me aleijou muito”. Deu-lhe um Muito Bom e, dois anos depois, isso valeu-lhe que Harry o tenha referido ao seu amigo Al. Doente com cancro, Al decide revelar a Jake um portal do tempo, situado na despensa da sua hamburgueria. Uns quantos degraus descidos e Jake atravessa 53 anos e aterra no dia 9 de Setembro de 1958, de onde pode regressar sempre que quiser, com um lapso horário de dois minutos. Cada viagem futura será como a primeira, com a história toda por escrever.
Al quer que Jake complete uma missão. Para impedir Lee Harvey Oswald, salvar Kennedy e “melhorar a América”, basta-lhe aguentar-se cinco anos no passado, sob a entidade de George Amberson, um agente imobiliário, depois professor substituto, no Texas. Pelo caminho, Jake tentará corrigir o drama da família do contínuo Harry. Dezoito capítulos e 400 e tal páginas depois, Oswald, a esposa russa e a sua bebé, instalam-se na rua onde Jake vive. O plano tem boas hipóteses de resultar. Mas será a história uma sucessão linear? Faz sentido corrigir o passado?
Enquanto, ao volante de um Sunliner, de um Ford ou de um Chevy, damos um passeio nostálgico (racismo e atraso tecnológico excluídos) pela América da infância e adolescência de Stephen King, pesquisamos o carácter de Jake/George, a sua humanidade, a capacidade de acreditar na força do amor (por uma bibliotecária), as dúvidas insidiosas sobre a teoria da terceira bala e a actuação solitária de Oswald.
O enredo segue mão de mestre, as páginas passam rápido e em suspensão. King sabe o que faz. Mas “o passado é astuto, além de inflexível. Contra-ataca”. Para lá da ficção e da especulação, o tempo permanece um mistério.