O número de mortes nas urgências podia ter sido evitado?
O que se está a passar nas urgências resulta de dois factores: o primeiro conjuntural tem a ver com uma epidemia de gripe, um vírus com gravidade e este período de frio prolongado. Mas a questão essencial é que o Governo foi avisado pela Direcção-Geral de Saúde. É um caso de negligência e insensibilidade porque o elenco das medidas a tomar é conhecido e o plano devia ter sido montado em Dezembro: alargar o horário dos centros de saúde à noite e fins-de-semana, fazer uma campanha de informação sobre como acorrer aos serviços, quais os sintomas de alarme e as medidas preventivas, reforçar as equipas de urgência hospitalar, procurar locais alternativos de internamento (alas hospitalares desactivadas, hospitais militares, instituições de solidariedade).
Isso teria evitado este caos?
Sou médico há 25 anos e nunca vi nada que se pareça em termos de incapacidade de reacção do sistema. E há uma atitude de desvalorização desta situação que é inaceitável. Mesmo depois da ocorrência de todas estas mortes e do caos que está instalado o ministério tenta explicar aos portugueses que não aconteceu nada de anormal. Claro que a isto acresce outra questão estrutural que é o de se ter cortado muito mais nos serviços de saúde do que era o acordo com a troika. Os serviços de saúde vivem hoje no limite da capacidade.
Quando o PS for governo defende que o Orçamento para a Saúde deve ser maior?
Não tenho dúvidas que não há nenhuma outra alternativa. Os serviços estão brutalmente subfinanciados. Mas devo dizer que a maior parte das medidas que há para assumir podem não se traduzir num aumento de despesa. A melhor organização dos serviços permite atender melhor as pessoas sem nenhum aumento significativo de despesa. É evidente que o sistema de saúde precisa de mais recursos, mas mais do que isso precisa de uma visão estratégica integradora e não de cortes constantes promovidos sob a capa de uma reforma a que ninguém assistiu. Se bem que não me custe reconhecer que o Governo tem sucesso em duas matérias: na área da política do medicamento e no combate à fraude e evasão. São consequências de medidas tomadas anteriormente mas onde o Governo teve sucesso, só que não disfarçam o essencial, a completa ausência de uma estratégia para a reforma dos serviços de saúde.
Do que depreendo não concorda com a proposta do Governo de passagem de urgências para privados?
Essa medida não serve para nada. É absolutamente inútil, até porque a maior parte das urgências dos hospitais privados não estariam preparados para responder a esse aumento de afluxo e denuncia o que vai na cabeça dos membros do Governo. É que os mesmos que dizem que não há recursos para financiar os sistemas públicos de saúde, encontram recursos desde que seja para que os doentes recorram aos privados.
A ADSE deve continuar?
Não há muito sentido sistémico na existência de subsistemas públicos ao mesmo tempo que o país tem um Serviço Nacional de Saúde de acesso geral e universal. Mas a verdade é que num cenário em que, nos últimos anos, os direitos e condições de vida dos funcionários públicos têm sido tão duramente atacados não me parece razoável propor a pura e simples extinção da ADSE. Temos que criar um mecanismo de gestão da ADSE mais transparente e que envolva os próprios destinatários, numa evolução que, a médio prazo, desejaria que fosse para um sistema mutualista gerido pelos próprios profissionais.
sonia.cerdeira@sol.pt