O que vamos comer em 2015

A necessidade de alimentar uma população mundial em rápido crescimento, com uma estimativa actual de sete mil milhões de almas, deixou à indústria agro-alimentar a responsabilidade e liberdade de criar soluções para produzir em larga escala, a baixo custo e com lucro. Foi reduzido o risco típico de milénios de produção agrícola e, por causa…

Cereal killer : trigo, a nova 'besta negra'

Ele está na Bíblia: o 'pão nosso de cada dia nos dai hoje'. Está na Tora: os judeus celebram a Páscoa com pão ázimo. Está na cultura de quase todos os países: chapati na Índia, pita no Médio Oriente, tsoureki na Grécia, bagels nos Estados Unidos. Está na cultura popular: 'como pão para a boca', 'casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão' ou, ainda, 'quem tem fome, sonha com pão'. Como pode um alimento tão profundamente enraizado em tantas culturas (e na mesa de tantas famílias) não ser bom para a saúde?

A questão é controversa e polariza opiniões. Porém, nos seminários médicos e nas revistas científicas o que está em causa não são opiniões mas sim evidências que começam a questionar o sacrossanto trigo. Médicos, investigadores e nutricionistas concordam que a criação de novas estirpes deste cereal, mais resistentes a condições ambientais e a pragas, estão na base de alterações substanciais no código genético do trigo, introduzindo uma nova espécie – o trigo 'anão' – hoje presente em 99% das produções agrícolas.

Segundo William Davis, o médico autor do bestseller Sem Trigo. Sem Barriga. Dietas para quê?, estas novas estirpes foram criadas nos EUA, no Centro Internacional de Desenvolvimento de Milho e Trigo, a partir de 1943, numa colaboração entre a Fundação Rockfeller e o Governo do México, para ajudar a tornar este país auto-suficiente em termos agrícolas. Menos de 40 anos depois, havia milhares de novas estirpes, sendo as mais robustas disseminadas pelos quatro cantos do mundo. A questão, alerta Davis, é que “as proteínas do trigo sofreram uma alteração estrutural considerável com esta hibridização, tendo aparecido 14 novas proteínas que não estavam presentes em nenhuma das plantas de trigo progenitoras. E estas novas estirpes nunca foram testadas em animais ou seres humanos. Estamos a falar em hibridizações que antecederam as modificações genéticas”, realça.

Com um 'novo' trigo super-resistente, mais barato e que permite produção em massa, entraram em cena os lobbys dos cereais. José Manuel Boavida, o médico responsável pelo Programa Nacional para a Diabetes, defende que foram eles “que introduziram a ideia que uma quantidade grande de hidratos de carbono – ou seja, cereais – seria a forma mais adequada para uma alimentação equilibrada”. O resultado foi que as próprias directrizes de alimentação assimilaram estes pressupostos como verdades absolutas. De acordo com a Roda dos Alimentos (criada em 1977 para servir de bússola aos hábitos alimentares saudáveis), os cereais – incluindo o trigo – devem constituir uma das maiores fatias da dieta, cerca de 28% (ainda assim, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, os portugueses superam esse valor, ingerindo cerca de 31%).

No seminário The Gluten Trilogy, que teve lugar em Lisboa, no passado dia 18 de Janeiro, a comunidade médica interrogou-se se estamos verdadeiramente no caminho certo, e qual o verdadeiro papel dos cereais – e principalmente do trigo – numa população ocidental cada vez mais obesa. Só em Portugal estima-se que 63,8% dos homens e 54,6% das mulheres tenham excesso de peso, segundo um estudo publicado, no ano passado, na revista The Lancet, pelo Instituto para a Avaliação e a Métrica da Saúde da Universidade de Washington (EUA).

“Mas não podemos pôr o problema da alimentação como um problema de escolhas individuais, isso é exigir demasiado às pessoas”, diz Manuel Boavida. E lembra: “Os alimentos que temos hoje disponíveis são feitos à base de farinhas que são quase açúcar. Não temos o grão integral, temos um grão muito refinado e depois o que vai acontecer é que vamos ter hidratos de carbono que vão ser rapidamente absorvidos e metabolizados, que constituem uma entrada de energia que não vamos utilizar (porque estamos mais sedentários), e que são indutores de mais fome porque fazem um pico de insulina, que rapidamente transforma esse açúcar em gordura, em ácidos gordos, e a seguir o açúcar baixa e vem a fome novamente. É um círculo vicioso”. Para interromper esse círculo, o médico sugere que cada um encontre o seu próprio equilíbrio, com redução dos hidratos de carbono, nomeadamente os cereais. E alerta: “Não estamos a falar de moda ou de elegância, mas de uma questão de saúde”.

'Escolham carne ecológica'

Que o excesso de consumo de carne de vaca prejudica a saúde é uma conversa antiga. Mas o mais recente estudo da Harvard School of Public Health, que durante 20 anos analisou os hábitos alimentares e a saúde de mais de 110 mil adultos, diz agora que “qualquer tipo de carne vermelha, em qualquer quantidade, aumenta significativamente o risco de morte prematura”. As conclusões são preocupantes, mas Pedro Bastos alerta para o facto de na Europa ainda estarmos longe dos perigos a que estão expostos os norte-americanos. “A legislação nos EUA é mais permissiva, expondo os animais a doses  superiores de hormonas e antibióticos. Logo, os estudos americanos mostram aumento de risco de algumas patologias, como o cancro do cólon”. Assim, o que o investigador recomenda é que os consumidores “escolham carne ecológica, em que os animais são tratados com dignidade, andem ao ar livre e pastem em vez de serem alimentados a cereais”.

Leite pode sair da alimentação

“Numa dieta saudável as pessoas não devem beber leite – o leite é para as vacas”, atira sem contemplação Tom O'Bryan. Já a dietista Joana Oliveira tem uma perspectiva mais apaziguadora de como este alimento foi fundamental no passado, quando o acesso à carne, ao peixe e aos ovos era limitado. “O leite era uma fonte proteica fundamental porque era muito mais barata. Hoje, se as pessoas o quiserem tirar da alimentação, podem fazê-lo porque conseguem ir buscar proteínas a outras fonte. Definitivamente não podemos dizer que o leite é um 'veneno'“. Esta visão é partilhada pelo director do Programa Nacional para a Diabetes, que lembra que nos últimos anos era prática comum defender o leite magro. “Neste  momento sabe-se que a gordura diminui a rapidez com que os açúcares são absorvidos. O ponto de partida principal é que a nossa ignorância sobre a alimentação é enorme e que a necessidade de investigação e de conhecimento deveria estar nas mãos das universidades, nas mãos de institutos autónomos, livres de influência dos grandes lobbies alimentares”, conclui Manuel Boavida.

Ovos: a comida perfeita?

A Roda dos Alimentos atribui aos ovos e ao leite uma pequena fatia. Em conformidade, habituámo-nos a ouvir que uma quantidade superior a três ovos por semana poderia contribuir para o aumento do colesterol. No entanto, também esta teoria parece ter sido ultrapassada com as mais recentes investigações científicas. A dietista Joana Oliveira esclarece que até agora a tónica estava na quantidade e no tipo de gordura que os ovos tinham. No entanto, chegou-se à conclusão que o tipo de gordura é muito semelhante à das carnes vermelhas, ou seja, gordura saturada. “O que se tem vindo a perceber é que mais do que as gorduras saturadas, são as gorduras hidrogenadas que promovem o aumento do colesterol”. As gorduras hidrogenadas são as gorduras produzidas a nível industrial, chamadas 'gorduras trans'. “Nos EUA, que estão mais alerta para esta questão, no rótulo já tem que dizer se aquele alimento tem ou não gorduras 'trans'. Em Portugal isso não acontece e o que diz no rótulo é 'gordura vegetal'. E já se sabe que isso tem influência no aumento da aterosclerose”, realça a dietista que alerta que não se deve comer três ou quatro ovos de uma vez, tal como não se deve comer um bife de 200 gramas, mas “se comermos só um ovo até tem menos quantidade de proteína do que um bife de 100 gramas”, conclui. Além de gorduras saturadas, os ovos têm também lecitina, relembra Tom O'Bryan, que ajuda o organismo a usar esse colesterol. “E o colesterol é a matéria-prima para fazer hormonas, como o estrogénio, a melatonina ou a serotonina. E é por isso que os ovos são chamados de 'comida perfeita': toda a sua proteína é totalmente utilizável”, afirma o médico americano.

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