Eu, eu e ainda eu

Após uma longa prelecção sobre si mesmo, X incita o interlocutor: “Mas, não falemos de mim, falemos de ti. O que achas de mim?”. Podia ser só uma piada, se não traduzisse uma das gangrenas do nosso tempo: o abuso do amor-próprio, suporte para o autismo ético, a ganância e o solipsismo. Eu sou, logo…

Durante anos fascinado por estas questões, em 2014 o filósofo, académico e popularizador da filosofia Simon Blackburn dedicou-lhes o ensaio Vaidade e Ganância no Século XXI. Uma viagem perspicaz da Antiguidade Clássica até ao império das selfies, à procura de um sentido para “as emoções e as atitudes que incluem uma certa estimativa de si mesmo, como o orgulho, a auto-estima, a vaidade, a arrogância, a vergonha, a humildade, o embaraço, o ressentimento e a indignação” e as qualidades co-relacionadas: “integridade, sinceridade ou autenticidade”.

A ironia e a elasticidade das reflexões de Blackburn são cativantes, quer ele analise a “síndroma presunçosa” que ataca os líderes políticos, o amour propre de Rousseau, a impunidade dos gananciosos, as vantagens do auto-respeito ou a responsabilidade da igreja e de Deus pela repressão ou criação de mitos de si mesmo. 

A angústia do filósofo começou diante de um anúncio da L'Oréal: “Porque você merece”. O que queriam dizer-lhe com aquilo? E por que sorriam as manequins com tanto desdém? Após investigar o sentido do eu e o sentido dos outros, o filósofo descortinou o subtexto da publicidade: “Porque você não merece. Mas poderia merecer se comprasse esta coisa”. Assim, o motor para a compra não é a ambição narcísica, mas, sim, o desespero de se ficar aquém; uma ambição irrealista, tão insaciável como a conta bancária dos cirurgiões plásticos. Uma dança louca da vaidade com a ganância, para a qual Blackburn propõe um travão simples: “Não deverá ser demasiado difícil sugerir às crianças que o único companheiro de Narciso é o Eco, e que afinal não havia mais nada”.