Está de frente para a Base N.º 65 da Força Aérea Americana. Na pista, uma aeronave militar prepara a descolagem. Aterrou horas antes e é a única que passa hoje pelos Açores. “Deve ir para Ramstein”, arrisca João Manuel Galvão, referindo-se à Base dos EUA na Alemanha, a responsável pelo destacamento americano nos Açores.
Galvão fala com propriedade. Trabalhou 30 anos para os norte-americanos nas Lajes. Entrou em 1981, com 32 anos, e saiu há dois. “Vim para a reforma, sem penalizações”. Regressou à lavoura, onde se iniciara quando ainda era criança. Hoje a agricultura soma-lhe rendimentos à reforma de 1.080 euros. “Eu trabalhava na pista. Descarregava a carga dos aviões: fruta, leite, carne. Tudo o que era para ser vendido no Comissary [o supermercado da Base]”, explica. “Os americanos não compram os nossos produtos. Lá dentro só vendem produtos que chegam da América”.
Isso e as quotas leiteiras – introduzidas pela U.E. na década de 80 para acabar com a superprodução – terá ditado o abandono da monocultura da vaca na ilha. Os terceirenses correram atrás dos postos de trabalhado americanos na Base e da prestação de serviços para militares. “A gente inscrevia-se num escritório civil e ficava à espera que nos chamassem. Os padrinhos ajudavam, claro”.
Agora que Washington decidiu dispensar 500 trabalhadores portugueses até ao final do ano, a mão-de-obra regressa a casa, de onde nunca saiu. Há quem fale no retorno à agricultura, principal sector de actividade da região. Mas só o tempo dirá se assim é ou se a emigração para fora da ilha será a solução para centenas de trabalhadores que por estes dias acordam em sobressalto do sonho americano.
Nascer no meio da América
Na noite de sexta-feira a ilha pára para ouvir um especial informação sobre a Base, na RTP-Açores, onde se dá resposta às dúvidas que inquietam os terceirenses. Emília Barcelos, de 53 anos, está entre os trabalhadores que foram ao auditório do Ramo Grande na expectativa de perceber o futuro. Sabe bem o que é aguardar um telefonema americano. Perseguiu durante anos o sonho de receber uma folha salarial em inglês. “Lá dentro temos benefícios que não conseguimos cá fora: recebemos de 15 em 15 dias e as horas extraordinárias são pagas a 120 e a 160%”, enumera.
Recebeu a bendita chamada aos 35 anos, para ir trabalhar no Ocean View, snack-bar aberto 24 horas, com serviço de entrega de comidas nas casas dos soldados, oficiais e sargentos dentro da base e nos bairros fora dela onde vivem, cada vez em menor número, os militares e as suas famílias. “Nós fazemos tudo: hambúrgueres, galinha frita, baguetes de carne moída, chicken nuggets, pizza. Se nos atrasamos nas entregas, os militares ligam a reclamar. Mas são muitos pedidos”, explica Emília. Durante anos foi a única mulher a trabalhar no bar que deve o nome ao facto de estar erguido numa das zonas montanhosas da Base, com vista para o Atlântico. Há 19 anos, quando entrou, foi para cozinheira. Agora está na caixa. Não sabe se será dispensada. Mas o movimento do bar dá-lhe alguma esperança. “Quando entrei éramos 10, agora somos 30 empregados”.
O pai de Emília Barcelos trabalhara na Base, no esquadrão de engenharia. Fazia a manutenção dos electrodomésticos nas casas dos militares. O marido, que se reformou depois de sofrer um AVC, também foi empregado dos americanos: fazia a manutenção dos carros militares que circulavam no interior da base. Em casa, lembra, sempre viveu de acordo com a cultura americana. No Natal, o bacalhau deu lugar ao peru e o Dia de Acção de Graças é religiosamente assinalado. “Eu nasci no meio da América”, resume, ao lado da filha, de 16 anos. “Ela é de uma geração diferente. A Base para nós era uma alternativa a uma vida com dificuldades. Eles hoje têm o mundo pela frente”, diz numa entoação americanizada. Durante as horas de trabalho só fala inglês.
Dólar e escudo
na carteira
A convivência com os americanos abriu aos terceirenses as portas ao consumo inacessível à maioria dos habitantes da ilha. Emília tomou o gosto às marcas compradas na BX, um grande armazém comercial dentro da base, com secção de brinquedos, bebidas, roupa, calçado, cigarros, electrodomésticos, informática, livros. Tudo livre de taxas. “Eu não sei fazer compras cá fora. Compro tudo lá dentro: desde comida a roupa. Devo muito aos americanos. Não conseguia ter o nível de vida que tenho e dar o que dou aos meus filhos se não fosse a Base”.
A maioria dos habitantes da ilha contou muitas vezes com a ajuda dos militares americanos para fazer compras na Base, antes de o Comando autorizar a entrada, uma vez por ano, de civis açorianos nas zonas de comércio.
Em 2003, porém, e face às queixas de concorrência desleal, a Câmara do Comércio de Angra do Heroísmo pediu ao comando português na Base das Lajes a suspensão das licenças atribuídas à população. Ironia das ironias, entre os queixosos estariam comerciantes que alegavam ser incapazes de competir com os americanos mas que compravam produtos lá dentro para vendê-los cá fora. Nem a Força Aérea Portuguesa, conspiram os populares, resistia à tentação, e descolava os seus aviões da ilha rumo ao continente carregados com frigoríficos e fogões para apetrechar os quartéis espalhados pelo país.
Na Terceira, todas as casas têm um adaptador de electricidade. Ilídio Gomes, 74 anos, foi mais longe e tem duas correntes em casa: a de 110 volts, americana, e a de 220, portuguesa. Encontramo-lo no Porto Martins, freguesia a cerca de 20 minutos da Base, com piscinas naturais, e zona de eleição dos militares, que arrendam casas por valores que são minas de ouro para os senhorios: uma casa com três casas de banho e uma sala ampla pode chegar aos 2.500 euros mensais. No final dos anos 80, chegaram a estar arrendadas 200 casas só na freguesia. “Era uma loucura de gente. Os senhorios estavam a construir as casas e os militares pediam-nas para as terminar porque queriam entrar o quanto antes”, recorda Ilídio.
No café onde passa parte do dia, está rodeado de ex-trabalhadores das Lajes que ainda guardam dólares na carteira – no tempo do escudo, os pagamentos na base eram feitos com dólares mas ainda hoje não é raro encontrar um habitante da ilha que tenha a moeda americana ao lado do euro.
Ilídio começou a trabalhar para os americanos em Janeiro de 1966, com 26 anos. Reformou-se aos 62. Durante 36 anos viveu o sonho americano dentro da Base trabalhando para o Channel 8, canal de televisão produzido dentro das Lajes para os militares. Fazia o controlo de emissão e lançava os programas de entretenimento e de informação para o ar. Integrou uma equipa que chegou a ter 42 pessoas, entre portugueses e americanos. “Era tudo manual. Os programas vinham da América, em cassete, e nós transmitíamos em frequência modelada. Só depois passou a ser via satélite”, explica. A televisão é o “exemplo de como os americanos tentaram recriar nos Açores o seu estilo de vida para que os militares se sentissem em casa e nós acabamos por ficar expostos a estes produtos”.
Cresceu a olhar para a auto-suficiência dos americanos, nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX. Guarda na memória os dias em que ia brincar com os filhos dos militares seus vizinhos. Lá encontrava a televisão, a Coca-Cola, proibida na ilha, e as guloseimas ou os candies, traduzidos para 'candilhos' pelos açorianos. “Para nós aquilo eram casas de ricos. Havia luz e nós não tínhamos. Os americanos construíram duas centrais: uma para as habitações e serviços e outra para a parte operacional. Naquele tempo faltava a luz dia sim, dia sim. Eles não podiam viver dessa forma”, justifica.
O Channel 8 tinha dois noticiários: um às 18 horas, apresentado por três militares e que incluía, além da informação que chegava da América, notícias sobre desporto e o estado do tempo; às 23 horas, havia uma síntese. Notícias sobre os Açores e Portugal eram poucas ou quase nenhumas. Excepto em 1980, ano em que um forte sismo quase destrói a ilha. Aí, os americanos fizeram questão de receber informação local e saíram da Base para auxiliar a população. “Eles trabalharam ombro a ombro com a população e, nos dias que se seguiram ao terramoto, abriram as portas dos seus dormitórios para acolher quem não tivesse onde ficar. Até disponibilizaram a própria gasolina que importam para os carros deles, porque ficámos sem combustível”, refere Ilídio.
Mas até as grandes potências têm as suas fragilidades. Ilídio recorda bem um dos momentos em que sentiu os americanos com medo. Foi na ressaca do 25 de Abril de 1974. “Eles tentaram disfarçar, mas percebia-se que temiam as consequências da Revolução. Não se sabia para que lado ia virar Lisboa. De repente, começaram a pensar que os portugueses eram todos comunistas. Mas nós tratámos de dizer: 'Calma, calma, que não somos comunistas'“. Jimmy Carter, Presidente entre 1977 e 1981, chegou a ir às Lajes reunir com o recém-eleito Presidente português, António Spínola, para testar a estabilidade do acordo entre Portugal e os EUA, assinado em 1944.
A população parava para assistir às visitas dos Presidentes americanos. Uma vez que António de Oliveira Salazar nunca foi às Lajes, até ao 25 de Abril os terceirenses recebiam os líderes americanos como se dos seus próprios Chefes de Estado se tratassem.
A gravata de Bush pai
Que o diga José Tristão, 80 anos. Vive em Santa Bárbara, no sudeste da ilha, a 13 km de Angra do Heroísmo, a cidade Património da UNESCO. Entrou para a Base em 1951, com 16 anos, para trabalhar para uma companhia americana que recrutava mão-de-obra local com urgência. Era o arranque oficial da construção do que viria a ser a Base Aérea e Naval americana nas Lajes, depois de os EUA deixarem a ilha de Santa Maria, onde estiveram antes ao abrigo do tratado de 1944.
Na Terceira ocuparam o lugar dos ingleses, que ali chegaram por via de um acordo assinado com Portugal em 1943 para a construção de uma base inglesa nas Lajes. Dessa presença, restava em 1946 pouco mais do que “barracas de folha”, num terreno que fora em tempos o celeiro da ilha. Foi preciso recrutar muita gente para erguer a muralha de Defesa norte-americana no Atlântico. “Quanto mais aquela empresa gastasse, mais ganhava. Era essa a política”, lembra Tristão. Este antigo escriturário fala em 3000 trabalhadores portugueses na altura. “Eu recebia 1200 escudos. Era muito dinheiro. Virou-se tudo para a Base”.
Nesse período, os portugueses do continente e das restantes ilhas açorianas precisavam de uma 'carta de chamada' para viver e trabalhar na Terceira, que entretanto passava a ser vista como a terra das oportunidades, qual América, destino de muitos açorianos que fugiram à pobreza nos anos 60 do século XIX.
Em 1963, depois de cumprir o serviço militar obrigatório, Tristão foi trabalhar para o hotel da Base, onde parava a tripulação dos aviões militares. Ficou lá dois anos e saiu para o Supply, um armazém que guardava as peças dos aviões, dos carros e que já fechou. “Tinha peças para tudo. Hoje, qualquer encomenda é feita pela internet e o primeiro avião a vir da América traz”. Neste armazém, onde chegaram a trabalhar 180 portugueses, ficou sete anos, até ir para a capela americana, na qual três capelães americanos ministravam outras tantas confissões para os militares e familiares: protestante, católica e judaica. “O capelão católico não trabalhava ao domingo. Era substituído por um padre português que falava inglês”.
Na capela, tinha uma missão nobre: distribuir 20.000 dólares em material pelas casas de caridade, misericórdias e pelas sopas dos pobres das ilhas. Certo dia, algures no final da década de 60, e porque o avião particular do general da Base estava em manutenção, conseguiu que o comandante de um Lockheed C-141, cargueiro com quatro motores que iria descolar da Terceira rumo à Alemanha, fosse a São Miguel entregar comidas e roupas à Casa do Gaiato. “O avião ficou em Ponta Delgada à espera que eu fosse entregar o material. E trouxeram-me de volta à Terceira. A viagem durou 15 minutos. No dia seguinte, foi uma polémica enorme porque a TAP ainda não voava para São Miguel, porque a pista era pequena. Mas a verdade é que aterrou um avião muito maior do que os da TAP”, lembra, entre sorrisos.
Reformou-se com 57 anos. Mas antes passou pelo Channel 8, primeiro como operador de câmara e depois a gravar a emissão que recebia em fibra óptica vinda de Los Angeles para emitir nos blocos noticiosos da televisão da Base. Trabalhava no turno da noite e via o mundo em directo. Viu Rosa Mota levantar a bandeira portuguesa nos Jogos Olímpicos de L.A., em 1984, e o rebelde desconhecido a desafiar os tanques que rumavam para a Praça Tiananmen, para reprimir o protesto estudantil em Pequim, em 1989.
Mas eram as coberturas das visitas presidenciais às Lajes que lhe deixavam um nervoso miudinho. Entre estas visitas, destaca uma de George Bush pai, então vice-Presidente de Reagan. Antes de começar a gravar uma entrevista ao líder norte-americano não hesitou em ir alinhar a gravata do então Presidente. “Em 1976 fiz um curso de filmagens em Colorado, pago pela Base. Lá aprendi que o entrevistado tinha de estar com a gravata alinhada. Não era o caso. Saí do pé da câmara e pedi-lhe licença para mexer na gravata. Ele deixou. No final da entrevista veio agradecer-me e disse: 'Nunca ninguém me tinha feito isso. Obrigado'“. Horas mais tarde, lembra Tristão, num jantar no clube dos oficiais, de que é sócio, Bush não esqueceu o português que o havia deixado impecável perante as câmaras e cumprimentou-o. “Eu era o único português ali. Ele fez algumas perguntas sobre os Açores. Estávamos nos primeiros anos da Autonomia”, recorda, orgulhoso.
Com 80 anos, Tristão vai todos os dias à base, onde tem uma loja da PT, logo à entrada. Antes de ser agente da telefónica nacional criou uma pequena empresa de jardinagem. “Cortava tudo o que era relva dentro e fora da Base. Aquilo ainda dava uns 20 mil contos por ano”. A mulher também teve uma empresa de limpezas durante 11 anos para os serviços da Base e casas de americanos. A concorrência ditou o fim das duas empresas.
A bandeira ao acordar
Regressamos à Praia da Vitória. No bairro de Santa Rita, numa elevação que entra pela Base e que fica paredes-meias com o miradouro General Humberto Delgado, a vida sobre as Lajes conjuga-se no passado. “Está a ver estas casas? Era tudo de americanos. Eram só carros americanos à porta e o autocarro das crianças apanhava-as para as levar para a escola, também aqui ao lado”, descreve Aldina Sousa, 62 anos. Da varanda da sua casa vê o Comando norte-americano e acompanha o dia-a-dia da Base, onde tem um filho de 35 anos a trabalhar, no BX. “Isso era uma loucura. Chegaram a estar lá dentro 7000 pessoas, portugueses e americanos. Ganhou-se muito dinheiro aí dentro, mas também se trabalhou muito. Só tínhamos uma hora de almoço. À americana”.
Trabalhou na Base dos 19 aos 55 anos. Está reformada há sete. Era telefonista. “Tudo o que eram chamadas telefónicas passava por nós. Ligávamos para a Casa Branca e fazíamos as ligações para a Alemanha e para as famílias dos militares”, recorda. A central telefónica, que chegou a empregar 18 pessoas ao mesmo tempo, foi desactivada. Resistiu, com os colegas açorianos na central, à entrada de civis americanos para o desempenho das funções. “Nunca deixámos que eles admitissem civis americanos, porque isso punha em causa os postos de trabalho dos portugueses”, lembra. “Agora nem portugueses, nem americanos”, conclui.
Quando se realizou a cimeira das Lajes, como ficou conhecido o encontro entre George W. Bush, José Maria Aznar, Tony Blair e Durão Barroso para declarar guerra ao Iraque, Aldina ainda trabalhava na central. Recorda que naquele dia não viu as medidas de segurança que rodearam o célebre encontro entre Georges Pampidou, Richard Nixon e Marcelo Caetano para discutir a crise económica, em 1971. “Lembro que o Presidente Americano trazia uma telefonista que ficava num quarto ao lado da central, sozinha, onde fazia as comunicações que ele pedia. Tudo muito sigiloso. Nós não ouvíamos nada nem sabíamos para quem eram as chamadas”.
O pai de Aldina, que trabalhara precisamente na central telefónica, preparou-a desde cedo para o american lifestyle. Começou por pagar aulas de inglês numa escola privada, de uma professora americana que entretanto se reformara. Depois, deixou que a filha percebesse que “os americanos são boa gente mas gostam que se diga 'Yes, sir! Yes, sir'“.
Todos os dias, de manhã, vê a bandeira dos EUA ao lado portuguesa, hasteadas em ao frente do Comando norte-americano. Sempre que olha para a bandeira lembra-se que nunca conheceu o seu patrão. “O nosso patrão era o 'Uncle Sam', como dizíamos”. Tudo o que tem hoje conseguiu-o através da América. Ou melhor: foi comprado com o dinheiro americano. Mas orgulha-se de o ter investido todo na ilha. Sentiu-se emigrante? “Claro que sim. A bem dizer vivi na América. Só não tive saudade. Porque dormia em casa”.
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