Nos jornais sempre existiram secções de passatempos – palavras cruzadas, sudokus, veja as diferenças, etc.; agora, as televisões seguiram-lhes as pisadas.
Geralmente os apresentadores são raparigas, embora nem sempre. Raparigas que, para tornarem o programa visualmente mais apelativo e estimulante, vestem curtas mini-saias e usam uns decotes pronunciados. Até aqui tudo bem.
No ecrã, ao lado do apresentador ou das apresentadoras, aparece um quadro com o passatempo a resolver.
Estava eu a fazer zapping pela madrugada fora (deito-me em geral muito tarde) quando vi aparecer no ecrã uma simpática jovem vestida vaporosamente – e parei. Atrás dela lá estava um quadro com um monte de letras. E o desafio era formar uma palavra de quatro letras, com o nome de um animal, usando as letras presentes no quadro.
Começava eu a equacionar mentalmente hipóteses de solução, quando se ouviu um toque de telefone. A rapariga atendeu, perguntou o nome da pessoa e donde estava a ligar, do outro lado do fio um fulano disse o nome e a localidade, e depois deu o seu palpite: “Pato”.
– Não, não é pato… Lamento! – respondeu a apresentadora, com voz pesarosa. E vai disto, registou num placard a palavra ‘Pato’ (numa letra horrível, diga-se de passagem. Ao menos, podiam ensinar caligrafia às moças).
A tarefa destas apresentadoras é muitíssimo chata, porque têm de estar sempre a falar. Nunca se podem calar. E como há muito pouco para dizer, repetem à exaustão as mesmas coisas.
– Então, ninguém liga? É um animal com quatro letras. Quatro letras apenas. Vá lá, liguem! É muito fácil. E quero esclarecer que as letras que têm acentos devem ser usadas em palavras onde esses acentos existam…
Esta última observação acendeu na minha cabeça uma luzinha. E embora a jovem tenha acrescentado que essa situação poderia não se aplicar àquele caso concreto, vi logo que sim, que tinha de se aplicar. Caso contrário, a rapariga não se lembraria de o referir.
A jovem continuava a sua lengalenga, quando voltou a tocar o telefone. “Galo”, disse uma voz feminina. Mas ainda não era!
– Não, não é galo – lamentou a apresentadora, novamente com ar compungido. E continuou a incentivar as pessoas a ligar, porque a solução não era nada difícil e já havia várias hipóteses riscadas.
Enfim, o programa lá foi andando – e, depois daquela dica sobre a acentuação, peguei nas letras do quadro que tinham acento e concluí qual seria a palavra certa.
A rapariga continuava a incentivar as pessoas a telefonar. Devia estar cansada, pois além de ter de falar sem parar não podia sentar-se, andando sempre de um lado para o outro. E percebi que aqueles programas duram horas!
De vez em quando, nestes passatempos verifica-se uma pequena novidade que anima a conversa: a rapariga anuncia que a produção do programa aumentou o valor do prémio. No caso de que estou a falar, o valor subiu de 400 para 500 euros.
Subitamente, novo toque de telefone e novo palpite: “Pato!”.
– Pato? – estranha a apresentadora. – Mas isso já foi avançado por um concorrente anterior… Não vê aqui no placard, escrita por mim, a palavra ‘pato’? Já foi dita. Perdeu uma oportunidade! Os concorrentes têm de estar mais atentos…
De facto, a palavra estava lá escrita pelo punho da rapariga, só que a letra era tão má que nem se percebia bem. Mas enfim. A madrugada lá ia avançando e eu começava a ficar efervescente…
Para mim a solução era óbvia, e fazia-me nervos ninguém lá chegar. A rapariga incentivava pela milésima vez as pessoas “lá em casa” a jogarem, mas passavam os minutos e ninguém ligava. O prémio foi subindo: de 500 para 600 euros, depois para 700, para 800. Finalmente lá houve mais uma chamada com um palpite errado.
O enorme espaçamento entre as chamadas, às vezes quase dez minutos, causou-me estranheza. Apesar do adiantado da hora, tratando-se de um canal aberto e de grande audiência seria natural que houvesse muita gente a ver e a ligar. Mas não.
Com o passar do tempo fui ficando mais impaciente, até que não resisti: peguei no telefone e liguei 760 300 300 (cada programa tem um número diferente). Esperei uma fracção de segundo e uma voz do outro lado informou qualquer coisa como:
– Lamentamos não poder ligar neste momento ao estúdio. Tente outra vez.
Não percebi, pois no ecrã a rapariga continuava a dizer:
– Então não consegue adivinhar a palavra? É tão fácil! Um animal com quatro letras que não é pato, nem galo, nem gato, nem… Vá lá! Não fique aí sentado no sofá e ligue!
Vai daí, liguei outra vez 760 300 300. Atendeu-me a mesma voz, mas a mensagem já era um pouco diferente:
– Temos boas notícias para lhe dar… – começou a voz, enchendo-me de alegria. Mas logo adiantou, para meu desconsolo: – Tem agora mais possibilidades de entrar em estúdio. Tente outra vez.
Irritado, tentei mesmo. Talvez à terceira fosse de vez. 760 300 300. Ouvi a mesma voz, que desta feita repetiu a mensagem anterior:
– Temos boas notícias para lhe dar. Tem agora mais possibilidades de entrar em estúdio. Tente outra vez.
Furioso, desliguei. Em estúdio, a apresentadora continuava a dizer:
– Então, ninguém liga? A imaginação acabou? É tão fácil! Um animal com quatro letras que não é pato, nem galo, nem gato…
Mudei de canal. Já não queria saber se o animal era mesmo o que eu imaginara ou outro qualquer. Já tinha percebido o importante: aquilo era uma aldrabice.
A rapariga está para ali a dizer continuamente que ninguém liga, mas é mentira. Deve haver centenas de parvos como eu a ligarem para lá a todo o momento. Só que eles vão deixando o porco engordar, pois cada chamada custa 0,60 €mais IVA, tenha ou não sucesso.
Gastei 1,80 euros mais IVA, mas dei o dinheiro por bem empregue. Foi um preço barato para me aperceber de uma fraude descarada. É que eu cheguei a acreditar ingenuamente na rapariga, quando ela lamentava o facto de ninguém ligar. Afinal, era apenas um engodo para ir extorquindo dinheiro às pessoas. “Vá lá, não liga porquê? É tão fácil! Basta marcar 760 300 300”.