Margarida Cardoso: ‘A história apaga primeiro as mulheres’

     

Tinha três anos quando o pai, militar da Força Aérea, foi chamado para uma comissão em Moçambique que acabou por se estender até 1974. As mulheres da casa – ela, a irmã, a mãe e a avó – fizeram-lhe companhia na viagem de Lisboa, mas ficaram a viver isoladas em cidades do centro e sul como Beira e Lourenço Marques (hoje Maputo). “Não éramos colonos, não tínhamos ido para lá de livre vontade, tínhamos uma identidade muito confusa”. 

Com 51 anos e depois de Natal 71 (1999), Kuxa-Kanema (2003), A Costa dos Murmúrios (2004), este último uma adaptação do romance homónimo de Lídia Jorge, a realizadora Margarida Cardoso soma novo capítulo às suas memórias do colonialismo português. Em Yvone Kane, ficção co-produzida com o Brasil, Rita (Beatriz Batarda) viaja para um país africano ao encontro da mãe (Irene Ravache), uma antiga revolucionária marxista cúmplice de uma guerrilheira a que lhe interessa seguir o rasto.

Em quem se inspirou para esta activista chamada Yvone Kane?

Pensei na Josina Machel, que em Moçambique ficou vista como uma heroína, mas também na Sita Valles, sobre quem estou a fazer um documentário, e que é uma figura mais disruptiva. Era uma militante comunista que voltou para Angola em 75 e foi acusada de uma tentativa de golpe de estado contra o MPLA e executada na sequência disso. A História apaga a intimidade das figuras políticas e se é para esconder, as mulheres são as primeiras a ser apagadas.

A morte está presente em todo o filme.

Estamos no fim de uma era ideológica ligada aos movimentos de libertação, daí os cenários em ruínas. Acabou o tempo dos pós-colonizadores. Refiro-me aos que foram para lá depois da independência, não compartilham dos ideais colonialistas mas têm a pele branca.

No último plano enterra-se uma piscina de um hotel que se diz assombrada pelos espíritos ali fuzilados.

Que se tapem as atrocidades seguindo em frente para mim não é uma coisa negativa. As sociedades criadas a partir de coisas tão absurdas como o colonialismo forçaram relações que não estavam à partida feitas para ser assim. Nunca conseguiremos comunicar a não ser por uma brecha num muro e devemos aceitar isso com paciência.

Apesar de rodado sobretudo em Moçambique, o filme não nos dá referências geográficas nem temporais. Como se constrói essa indefinição?

Fujo a statements, coisas sólidas e claras. Gosto de fantasmas, do silêncio e de ecos. Não consigo escrever um guião com relações de causa e efeito que funcionem logo numa montagem de imagens. Escrevo muito, uma baralhada, e vou fazendo uma montagem de texto. Escrevo quase tudo a pensar nos sítios. Por exemplo, quando estou em Lisboa a escrever, ressuscito em mim locais que conheço como aquele hotel moçambicano de arquitectura modernista, aquela costa… Com o director de fotografia (João Ribeiro), que tem muita paciência para mim – sou eu que faço os enquadramentos todos – filmei no formato 2:35 que é mais esticado porque queria o ecrã dividido ao meio, como se mostrasse sempre dois mundos e qualquer coisa que os separa.

Tem tido a colaboração dos seus pais?

No documentário Natal 71, em que procurei tirar as coisas do silêncio, o meu pai entra como um dos depoimentos. A partir daí sempre me ajudou, mesmo em questões logísticas, porque costumo precisar de elementos militares. Neste filme que se pode dizer que é hermético, eles reconheceram todas as questões sem eu nunca as ter dito e não são nenhuns cinéfilos. Isso dá-me algum prazer.

Fotografia de José Sérgio/SOL