Apanhar ar

Na fotografia a preto e branco, Adília está sentada sobre uma miniatura de um banco tradicional alentejano, mãos postas, no regaço. É uma fotografia já antiga, de finais dos 90. Ao mesmo tempo, Adília parece pequena (uma criança) e gigante (a transbordar da mobília). Familiar e única. Também na poesia, Adília compõe um mundo à…

Chega-se à janela da casa lisboeta onde vive há 54 anos, porque precisa “de ar e de árvores”, e debruça-se para ouvir a “voz das cousas”. Neste livro, a paisagem é matinal, sobretudo as recordações de infância plasmadas em pequenas anotações/narrações autobiográficas, em prosa e poesia. A poetisa regista as palavras e as coisas (“Para mim os nomes são coisas.”) da memória, observa-as com o espanto de uma primeira vez, sem nostalgia mórbida, como as crianças celebram descobertas. São momentos da sua vida, surgem com a intensidade de um raio de sol que entra através de uma frincha e dura o que dura, pode ser apenas um minuto ou só um segundo.

Adília transmite afectos, dores, intensidades que são só dela, únicas, mas que nós podemos partilhar. O seu intimismo é autêntico e generoso. A sua ironia é jocosa e crua. Mesmo quando experimenta maior complexidade (“Nas salas de espera / dos médicos / cadeiras e pessoas / desirmanadas”), rejeita a pirueta exibicionista. Utiliza os nomes e as coisas como uma criança ou um iletrado (o que ela não é). Não aceita nem respeita códigos estéticos, não se verga a nenhuma noção do que a poesia deva ser. E é tudo tão visual, tão vivo apesar de lembrado. A obra de Adília Lopes, que nunca se-arma-em-alguma-coisa, mostra-nos que a poesia deve ser uma gramática própria, individual, por mais simples ou complexa que seja: original, como cada manhã.