‘A crueldade é uma condição permanente do homem ‘

Leonardo Padura esteve em Lisboa a promover o novo livro, Hereges. O autor cubano inspira-se na história do Saint Louis, um navio que em 1939 acostou em Havana repleto de refugiados judeus. Junta-o com a Amesterdão de Rembrandt e o famoso detective Mario Conde, num romance de longo fôlego. No regresso a Portugal, diz não…

Quando lançou 'O Homem que Gostava de Cães' contou que se emocionou ao visitar a casa onde Trotsky foi assassinado. Qual foi em 'Hereges' o momento que fez clique?

Começou com a ideia de escrever um romance sobre um jovem cubano do presente que se sente inconforme com as suas circunstâncias e que procura o seu espaço de liberdade. Mas depois achei que a leitura dessa história seria muito política, e então pensei em algo com uma leitura mais humana, mais universal e filosófica. E como tinha começado a escrever certa vez uma novela com um cubano judeu foi tomando forma a ideia de um romance mais abarcador e total, com personagens diferentes e tempos diferentes, da Amesterdão do século XVII até à Havana de 2007.

Mas houve um momento revelador?

Houve um momento muito especial no processo de investigação e escrita: ao visitar pela primeira vez o estúdio de Rembrandt. Quando chegámos este estava fechado e ia continuar por vários dias. Lucía, a minha mulher, explicou a um restaurador que tínhamos vindo de Cuba para ver o estúdio. Ele foi muito amável e juntamente com outro restaurador deram-nos uma explicação pormenorizada de como trabalhava Rembrandt. 

O episódio do Saint Louis é uma vergonha. A corrupção e a fraqueza do regime cubano de então são expostas de forma muito clara por si.

O grande problema de Cuba era a corrupção e não a pobreza. Cuba era um país rico mas com níveis altos de corrupção, cuja consequência era haver gente muito pobre e gente muito rica. E à volta do episódio do Saint Louis reuniram-se algumas das pessoas mais corruptas da História de Cuba. Além disso teve um peso importante a decisão política dos Estados Unidos em não admitir mais judeus além do número das quotas. Mas na essência os judeus não desembarcaram porque o Presidente cubano pediu uma quantidade de dinheiro tão grande que se se pagasse esse dinheiro nunca mais poderiam entrar outros judeus na América. E o Comité para os Refugiados Judeus decidiu não pagar, talvez na esperança de que os Estados Unidos os aceitassem. 

O regresso dos refugiados à Europa foi uma sentença de morte.

Estávamos em Maio, Junho de 1939. Três meses depois a Alemanha invadiu a Polónia. 

Numa nota prévia refere o testemunho de Hannover da matança de judeus na Polónia no século XVII. Foi o que mais o impressionou na investigação?

Li ali maneiras de matar e torturar pessoas que não imaginei que podiam existir. Às mulheres abriam o abdómen, punham gatos lá dentro e voltavam a cosê-las. Era uma coisa tão atroz que nunca julguei que um ser humano fosse capaz de pensar. E depois vê-se o que ocorre agora com o Estado Islâmico e concluo que a crueldade é quase uma condição permanente do homem. Pelo que crê e pelo que pensa, o homem é capaz de levar a outros homens extremos de sofrimento que nem sequer são próprios para um animal. 

Admira o povo judeu?

Uma coisa é o judaísmo, outra o sionismo, uma coisa é o povo judeu, outra é o Estado de Israel. Admiro muito o povo judeu porque tem uma cultura com mais de 2 mil anos baseada num só livro – é algo impressionante. E da mesma forma que falei da crueldade humana podemos falar da fidelidade humana a uns ideais, a uma fé, durante tanto tempo e em condições tão hostis.

Mas confiar na leitura que se faz de um só livro pode ser perigoso, como é o caso do Estado Islâmico.

Esse é o problema. Às vezes, em nome de um mesmo deus, de um mesmo profeta, da mesma fé, o homem pode fazer coisas maravilhosas ou coisas terríveis. 

Numa passagem do livro lê-se: 'O que conduz à morte é o esgotamento dos nossos anseios e desassossegos'. Aos 60 anos, ainda tem muitos anseios e desassossegos?

Creio que sim. Todas as pessoas devem tê-los. 

Em que está a trabalhar?

A sair da manga estão os guiões para cinema e televisão das quatro primeiras novelas de Mario Conde. Estou a escrevê-los com a minha mulher e vai ser realizado pelo espanhol Félix Viscarret, numa produção espanhola e alemã. Esperamos que as rodagens comecem dentro de três a quatro meses. E entretanto comecei a escrever outro romance com Conde, porque trabalhei muito a personagem com os guiões. 

Sonhou ser jogador de pelota (basebol) e também, na sua juventude, com uma Cuba diferente. O que lhe custou mais?

Uma pessoa sonha com muitas coisas de forma romântica, sabendo que nunca as irá alcançar. Sobre Cuba, creio que todos na minha geração sonhavam com um futuro diferente. Um futuro em que iríamos ter maior riqueza económica e igualdade social, mais espaços de liberdade. Porque no discurso político cubano repetia-se que íamos fazer um país mais rico, mais próspero e mais justo e no fim de contas temos algumas coisas que funcionaram bem, mas temos outras que nunca se concretizaram e não sabemos se alguma vez se concretizarão.

cesar.avo@sol.pt