Pobrete mas alegrete

No tempo do salazarismo, elogiava-se a pobreza. Elogiar não será a palavra certa. Mas como o país era muito pobre, e a oposição usava (naturalmente) essa realidade como uma arma contra o Regime, este defendia-se dizendo que a pobreza não era necessariamente uma desgraça.

Na época, ouvia-se muitas vezes a frase “são pobres mas felizes” – e até havia um dito popular muito parecido: “Pobretes mas alegretes”. Mesmo o fado, que se comprazia a cantar a tristeza, nunca se referia à pobreza como uma coisa ruim, podendo ser até um sinal de honestidade e bom carácter. Tristes eram os amores falhados; os pobres podiam ser felizes. Curiosamente, nos versos cantados por Marceneiro, Fernando Farinha ou Amália, os ricos é que não eram bem vistos, sendo frequentemente apresentados como gente sobranceira e arrogante. O fado Uma Casa Portuguesa é um exemplo acabado desta ‘ideologia’.

Por tudo isto, no tempo do salazarismo as pessoas da oposição (entre as quais me incluía) nunca diziam frases do género “o dinheiro não compra a felicidade”, pois achava-se que dizer uma coisa dessas era pactuar com a ideologia oficial. Era dar uma ajuda à reacção.

Embora eu sempre tenha achado que a felicidade não se compra, de facto, com dinheiro, a primeira vez que ousei dizê-lo em público foi já muito depois do 25 de Abril – e mesmo assim tive de ouvir das boas: “Isso é bom de dizer para quem não tem dificuldades”, “O dinheiro não traz a felicidade mas ajuda muito”, etc.

A verdade é que eu vivera situações de aperto financeiro mas também de relativo desafogo – podendo testemunhar com conhecimento de causa que a relação entre o dinheiro e a felicidade é muito ténue. Mas as pessoas não aceitavam.

Há anos, tive com um português ex-residente em Angola que foi viver para a Suíça uma conversa reveladora. Sabendo que o homem voltava a Luanda todos os anos, perguntei-lhe o porquê: se tinha lá família, se mantinha lá negócios, se ia visitar amigos… Mas a tudo o homem me respondia que não. Até que no fim, perante a minha surpresa, deu a seguinte explicação extraordinária: “Eu volto a Angola para recordar o que é a alegria de viver”. E tinha razão: ali, às vezes no meio da maior miséria, vêem-se crianças com a alegria estampada nos olhos e no rosto. E mesmo nos adultos, nota-se uma felicidade e uma espontaneidade contagiantes.

Lembrei-me desta história ao receber por estes dias um email com uma ‘parábola’ que transcrevo com pequenas alterações:

“Um pai bem instalado na vida, querendo que o filho soubesse o que é a pobreza, levou-o a passar uns dias com uma família de camponeses pobres. Quando o filho regressou a casa, o pai perguntou-lhe que tal tinha sido a experiência. E o jovem respondeu:

‘Na vida deles, tudo é diferente. Nós temos um cão e eles têm muitos. Nós temos uma piscina para nadar e eles nadam num rio. Nós temos candeeiros eléctricos para iluminar o jardim e eles têm a luz da Lua e das estrelas. A nossa propriedade chega até ao muro e a deles não tem limites. Nós compramos a comida feita que aquecemos no micro-ondas e eles cozinham os seus alimentos num fogão a lenha. Nós ouvimos a música dos cd, eles ouvem o canto dos pássaros, dos grilos e de outros animais. Nós vivemos ligados ao computador, ao telemóvel e ao tablet, eles estão ligados ao sol, à água, aos animais e à família’”.

Nesta parábola contém não uma mas duas ideias. A primeira é que os pobres não são necessariamente mais infelizes (ou os ricos não são necessariamente mais felizes). A segunda é que a riqueza tem servido em grande parte para afastar o homem da natureza.

No dia-a-dia, a consequência directa do aumento da riqueza foi essa mesma: afastar-nos irremediavelmente do habitat natural. Muito daquilo que consumimos contribuiu para isso.

Há um par de anos, numa conferência em Bragança, procurei retratar o homem do futuro: um indivíduo que não sai da frente do computador, exercendo a profissão a partir dali, recolhendo informação na internet, relacionando-se com amigos através das redes sociais, encomendando as compras por email, fazendo sexo virtual, vendo filmes, jogando videojogos…

Ora, hoje já há quem viva assim. Esta terrível imagem de ficção já faz parte da actualidade. Mas será isto viver?

Contam-me que em certas famílias as pessoas já quase não falam umas com as outras. O pai passa os serões num canto diante do computador a responder a emails ou a contactar com amigos e conhecidos, a mãe está noutro canto a navegar na internet, um dos filhos está no quarto a jogar no computador, outro vê no PC desenhos animados, etc. A comunicação desapareceu. Mesmo à hora da refeição, cada qual come no seu ‘posto’, sem tirar os olhos do ecrã.

É este o quotidiano de muitas famílias – que explica a tristeza e depressão em grande escala que se observa nas classes médias de muitas metrópoles europeias, apesar de viverem na abundância, em chocante contraste com a alegria de viver que eu próprio constatei em África, apesar da pobreza.

Em casa dos meus pais não víamos televisão. O primeiro televisor que tive foi já depois de ser casado. O meu pai sempre odiou essa máquina que considerava infernal. As últimas férias que passámos juntos foram na Serra da Gardunha, numa casa alugada a um guarda-florestal. A casa não tinha TV mas tinha lareira – e todas as noites nos reuníamos à volta dela a conversar sobre isto e aquilo. Um dia, o meu pai disse, deliciado: “A lareira é a nossa televisão. Há alguma coisa mais bonita do que o fogo? E tem a grande vantagem de podermos conversar, enquanto diante da televisão ninguém conversa”.

Todos partilhávamos nessa época a ideia de que as novas tecnologias iriam destruir as relações humanas. E hoje, olhando para trás, percebemos que a TV ainda era, apesar de tudo, um mal menor. Embora matasse as conversas em família, mantinha as pessoas juntas a ver os mesmos programas. E dava-lhes motivos de conversa: no fim, podia-se comentar uma notícia, um filme ou um concurso. Mas, com o progresso das novas tecnologias, cada um mete-se no seu canto com o seu computador a ver o seu programa diferente, a jogar ou a navegar nas redes sociais.

Todos sabemos que o progresso é imparável e não vale a pena lutar contra ele. É como bater com a cabeça na parede. Mas é hoje evidente que o aumento da capacidade de consumo tem contribuído muitíssimo para isolar mais o homem e para aumentar a sua infelicidade e solidão. Quanto mais tem, mais o homem se afasta da natureza e se isola no seu casulo. Além de que o consumo desenfreado vai necessariamente acabar por matar o Planeta.

jas@sol.pt