O jogo de xadrez do pugilista Putin

Em 1966, o escritor norte-americano Philip K. Dick publicou Counter-Clock World (Mundo em Contra-relógio, numa tradução literal; por cá saiu Regresso ao Passado). Numa penada: chegados a 1998, graças a um fenómeno sideral chamado Fase Hobart, os seres humanos começam a regredir cronologicamente (e os mortos ressuscitam para, também eles, rejuvenescerem).

O jogo de xadrez do pugilista Putin

Fora da ficção científica, e chegados a 2015, o mundo vive o seu momento Fase Hobart: para os cientistas que dirigem o Bulletin of Atomic Scientists da Universidade de Chicago, o relógio virtual que marca a aproximação da 'meia-noite da humanidade' andou para a frente dois minutos, ficando a três das zero horas, mas é uma regressão para a humanidade, tal como em 1949 ou em 1984.

A acção desestabilizadora da Rússia é um dos principais factores para que o nível da ameaça à sobrevivência do planeta tenha subido. Se no passado a União Soviética e os Estados Unidos mantiveram uma corrida às armas que acabou por ser mutuamente dissuasora – a destruição mútua estaria garantida, o que nem o mais lunático líder desejaria -, esse equilíbrio de terror parece ultrapassado. 

A poucos dias de 2015, o Presidente russo Vladimir Putin decretou uma nova doutrina militar, na qual a NATO e os Estados Unidos eram considerados as maiores ameaças. Em certo sentido, um regresso aos tempos da Guerra Fria, mas com um Presidente com um discurso contrário ao homólogo norte-americano (Barack Obama recebeu o Prémio Nobel da Paz por advogar um mundo sem armas nucleares), Putin não perdeu ocasião para se vangloriar das capacidades nucleares do país. E na cena doméstica, o antigo agente do KGB tem cada vez menos contrapesos. Resultado: “A ameaça de confronto militar nuclear, incluindo um erro de cálculo ou simples má fortuna, ainda está presente. Tenhamos isto em mente quando falamos da Rússia de Vladimir Putin”. Quem o diz é um perito na matéria, o ex-director do serviço de informações britânico MI6, John Sawers. 

Apesar de na teoria a política relativa às armas nucleares não sofrer alterações – o seu uso está limitado à defesa, excepto se “a existência do país estiver sob ameaça” -, Moscovo tem sido pródiga em usar a ameaça atómica na retórica contra o Ocidente. A mais recente acção de bullying teve como vítima a Dinamarca. O embaixador russo em Copenhaga, Mikhail Vanin, ameaçou aquele país caso instale o sistema de defesa antimíssil da Aliança Atlântica. “Não creio que os dinamarqueses tenham compreendido bem as consequências se a Dinamarca se juntar ao escudo antimíssil liderado pelos norte-americanos. Se o fizerem, os navios de guerra dinamarqueses passarão a ser alvos dos mísseis nucleares russos”, declarou no sábado ao Jyllands-Posten. O Governo liderado por Helle Thorning-Schmidt tinha anunciado há oito meses a intenção de instalar numa ou mais fragatas o sistema, que é defensivo. Isso mesmo já tinha lembrado o ministro da Defesa Nicolai Wammen, alegando que o escudo serve como defesa de Estados pária e de organizações terroristas. As declarações do diplomata russo ocorreram dias depois de ter sido noticiado que a  força aérea dinamarquesa detectou o dobro de invasões ou de voos não comunicados de aeronaves militares russas no espaço aéreo em relação a 2012.

O aumento da tensão com o Ocidente após a anexação da Crimeia e a continuada interferência na Ucrânia por parte de Moscovo tiveram como consequência a suspensão da cooperação nuclear com os Estados Unidos – o acordo START-3, de redução de ogivas nucleares, foi assinado por Obama e Medvedev em 2010. O que não significa que ambos os países não cumpram o tratado e reduzam o número de ogivas nucleares, mas estão ao mesmo tempo a investir na renovação do armamento nuclear, em especial Moscovo, que gasta um terço do cada vez maior orçamento militar nesse tipo de armas. E não só: a Rússia estará neste momento com uma capacidade nuclear e militar superior em território europeu. Isso mesmo foi noticiado pelo Pravda em Novembro, alegadamente citando um relatório do Departamento de Defesa dos EUA. 

“Putin começou uma guerra contra o mundo civilizado”, comentou o ex-Presidente polaco Lech Walesa. “Como podemos ganhar, se ele faz pugilismo e nós jogamos xadrez?”, perguntou. Os polacos vivem o momento com natural ansiedade: fazem fronteira com a Ucrânia, com a Rússia (o enclave de Kaliningrado, que vai receber mísseis Iskander, com capacidade para receber ogivas nucleares) e com a Lituânia. O grande receio reside na região dos países bálticos. Estónia, Letónia e Lituânia, além de terem sido anexados pela URSS (o fim do império, já se sabe, foi lamentado por Putin) têm percentagens significativas de russos. Não por acaso, a Suécia, que não pertence à NATO, vai reabrir um quartel na ilha de Gotland, situada entre a Suécia e a Letónia, e considerada estratégica. Os três bálticos, que têm pedido mais meios de defesa à Aliança Atlântica, são uma dor de cabeça permanente para o secretário-geral da organização militar. O anterior líder da NATO, Anders Fogh Rasmussen, afirmou em Janeiro que Putin estará a querer testar o artigo 5 do tratado da NATO – um ataque a um país-membro é um ataque a todos. Até onde quer ir o Presidente russo, só ele saberá. 

cesar.avo@sol.pt