Ao terceiro dia de detenção, a indignação de alguns aumentava: “Como é possível manter um ex-primeiro-ministro preso três dias?” (não imaginando que Sócrates iria estar preso muito mais tempo). Nos espaços de comentário e de debate, opinadores como Miguel Sousa Tavares ou Clara Ferreira Alves esforçavam-se a provar o maquiavelismo da Justiça portuguesa, quiçá manobrada por um mefistofélico Pedro Passos Coelho.
Decorria o 1.º round do acerto de contas de José Sócrates com a Justiça, mas o combate ainda estava muito longe do fim.
Nesta altura, muita gente acreditava (ou queria acreditar) que tudo não passava de um equívoco: o Ministério Público cometera um erro terrível ao mandar prender Sócrates, mas o juiz de instrução, confrontado com as ‘provas’ (ou a falta delas) e perante as explicações do detido, poria tudo em pratos limpos.
Escrevia-se e dizia-se, antecipando um volte-face: “Se Sócrates for libertado, será o descrédito total da Justiça!”.
A notícia de que Sócrates ficaria em prisão preventiva caiu pois, nestes meios, como uma bomba atómica. Gorava-se, para já, a hipótese de a prisão ter resultado de uma confusão ou de um erro grosseiro: um juiz, depois de analisar os dados da investigação e de ouvir o próprio, considerava as suspeitas credíveis.
Mesmo assim, muitos continuaram a acreditar na inocência de Sócrates e não desarmaram.
O ‘inimigo’ é que mudou: deixou de se falar de uma ‘conspiração’ do Ministério Público liderada pelo procurador Rosário Teixeira e passou a falar-se de um abuso de poder do juiz Carlos Alexandre – apontado agora como o mau da fita. Mário Soares atacou-o com estrondo, Proença de Carvalho produziu sobre ele afirmações deselegantes, e um pouco por toda a comunicação social os ataques a Carlos Alexandre multiplicaram-se.
Foi esta situação que vigorou durante três longos meses, entrecortados por episódios mais ou menos grotescos protagonizados pelo advogado João Araújo e por pedidos de habeas corpus falhados.
E o último pedido deste tipo, feito pelo próprio João Araújo e pelo outro advogado de Sócrates, foi o que causou maior perplexidade. A verdade é que Araújo tinha dito em tempos que o habeas corpus não era a via mais adequada para este caso. Então, por que recorreu a ela? Foi Sócrates que o pressionou? É bem possível. Sócrates deve ser, aliás, um péssimo constituinte, pois com o seu feitio intratável deve fazer a cabeça em água aos advogados.
O certo é que o habeas corpus se revelou, de facto, uma péssima cartada, pois a sua recusa caiu na véspera de se conhecer o chumbo do recurso para a Relação – e duas derrotas da defesa em dias seguidos tiveram um efeito desgraçado, induzindo na opinião pública a ideia de que Sócrates é mesmo culpado e que este processo já não vai voltar para trás.
Mas se o pedido de habeas corpus não foi uma boa cartada, o chumbo do recurso enviado ao Tribunal da Relação foi, de longe, o acontecimento mais gravoso para Sócrates até hoje.
Pela primeira vez desde que ele foi detido, um tribunal fora do círculo Ministério Público-Carlos Alexandre pronunciou-se sobre a ‘substância’ do processo.
Nos habeas corpus haviam estado em causa questões formais. Sócrates até podia ganhar, mas era uma vitória na secretaria. Na Relação, verificou-se a primeira derrota em campo. E uma derrota sem apelo nem agravo: exceptuando o perigo de fuga, que não seria “iminente”, os juízes consideraram haver “fortes indícios” de Sócrates ser efectivamente o autor dos crimes de que é suspeito.
O Tribunal da Relação, além de elogiar o trabalho da investigação e o desempenho de Carlos Alexandre, que reputou de “inteligente”, foi arrasador para Sócrates. Considerou totalmente inverosímil a explicação avançada por ele para os empréstimos do amigo Carlos Santos Silva. “Qualquer cidadão ficaria estupefacto perante o deslumbre de tanto dinheiro dito emprestado. Amizade sim, mas tanto também não. E amizade assim, por que razão?” – pergunta a Relação. E conclui: “Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”.
Houve quem considerasse este acórdão demasiado violento. Eu tomei-o como o desabafo de um órgão que se sentiu ofendido por uma argumentação que era um atentado à inteligência. Cabe na cabeça de alguém dar as explicações que os advogados de Sócrates deram para as entregas de dinheiro feitas por Santos Silva? Alguém vive à conta de um amigo altruísta gastando à grande e à francesa? Os advogados de Sócrates trataram os juízes da Relação como crianças, e tiveram a resposta que mereciam.
Mas, para lá da forma, este acórdão da Relação permite concluir o seguinte:
1. A hipótese de a detenção de Sócrates ter sido um ‘monstruoso equívoco’, como se chegou a aventar, foi afastada em definitivo (já seria muita gente equivocada);
2. A possibilidade de se tratar de uma ‘perseguição política’ também se tornou pouco crível (vários juízes debruçaram-se sobre o processo e concluíram haver matéria criminal);
3. A ideia de que a investigação foi mal conduzida e está mal fundamentada sofreu igualmente um forte abalo;
4. A afirmação (feita pela defesa e pelo próprio Sócrates) de que o processo não incluía quaisquer factos concretos e tudo se baseava em vagas ‘presunções’ foi liminarmente desmentida (o acórdão da Relação referia explicitamente factos comprometedores).
5. O ‘mau da fita’ deixou de ser apenas o juiz Carlos Alexandre (pois outros magistrados, com diferentes olhares, analisaram os elementos recolhidos pela investigação, e as alegações feitas pela defesa e pela acusação, e mantiveram a prisão preventiva).
Pode dizer-se que o acórdão da Relação encerrou o 2.º round do acerto de contas de José Sócrates com a Justiça – e saldou-se pela 2.ª derrota do ex-primeiro-ministro.
E assim começa a ser possível prever que o 3.º round deste caso decorrerá numa sala de tribunal – e será o julgamento de José Sócrates. E aí, o que poderá vir a acontecer ao arguido? Qual poderá ser a sua pena, se se provarem os “fortes indícios” de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção que a Relação confirmou?
Recordo que Duarte Lima apanhou 10 anos por ter ludibriado um banco privado.
Ora, ao nível dos crimes de colarinho branco, um primeiro-ministro usar o cargo para obter benefícios próprios – eventualmente com prejuízo do Estado – será o crime mais grave que um responsável público pode cometer.