O facto de ter nascido a 29 de Outubro faz dele alguém de signo escorpião e, segundo a cartilha de Domenech, uma escolha a evitar. Apaixonado pela astrologia, o treinador recorre às cartas de tarot para estudar as personalidades dos seus pupilos e nem sob tortura chinesa confiaria em nativos de escorpião, que diz serem más influências para o balneário.
Quantos menos convocar, melhor, pois considera existir o perigo de “eles se matarem em campo”. Pelé, Garrincha, Maradona, Figo ou Van Basten, por exemplo, estariam condenados ao ostracismo se lhe tivessem passado pelas mãos. Outra máxima dos astros que se sobrepõe às tácticas do ex-seleccionador francês: defesas do signo leão não são bem-vindos porque o seu “desejo de protagonismo pode ser letal” e resultar em golos sofridos.
Apesar de Van Gaal, Di Canio ou Rafa Benítez também atraírem tempestades com os ventos que semeiam, não haverá hoje muitos treinadores mais controversos do que José Mourinho. Desde a UEFA à UNICEF, passando pelos homens do apito ou treinadores adversários, ao português tudo serve de arma para fazer da polémica o seu pão nosso de cada dia. A estratégia é cada vez mais conhecida e aguça as vozes críticas, como a do ex-internacional inglês Jamie Carregher, a mais recente a juntar-se ao coro.
“A reacção dos jogadores do Chelsea é uma desgraça. É uma característica das equipas de Mourinho, que são respeitadas mas nunca serão amadas por causa de situações como esta”, sentenciou o antigo jogador do Liverpool, ao analisar o episódio em que os jogadores blues rodearam o árbitro para o pressionarem a expulsar Zlatan Ibrahimovic, do Paris Saint-Germain. “Eles levam a vitória para um nível que mais nenhum clube ou treinador o faz”, contestou Carregher, após o jogo que ditou a eliminação do Chelsea da Liga dos Campeões.
Domenech é talvez o único da actual geração que consegue competir com o treinador de Setúbal na ‘arte’ de ser o epicentro do terramoto. A nível de resultados não há comparação possível, mas a gerar ódios o francês surge uns furos acima. “O pior treinador desde Luis XIV”, disse dele um dia Eric Cantona.
Os choques com jogadores, ao contrário do que é norma com Mourinho, tornaram-se banais para o ex-seleccionador da França. Entrou em conflito com Zidane, que discordava das suas tácticas, fez Trezeguet sentir-se desvalorizado e chamou de “inútil” a Benzema, uma estrela em ascensão na altura. Mais tarde tornou-se o rosto do descalabro gaulês no Mundial-2010, na África do Sul: pegou-se com Anelka, que foi expulso da selecção por o insultar, enfrentou uma greve dos jogadores e recusou-se a cumprimentar o seleccionador anfitrião após uma derrota humilhante que ditou o adeus da França na fase de grupos.
A caótica participação virou assunto de Estado. Mal aterrou em Paris teve que ir prestar esclarecimentos no Parlamento francês. Pouco tempo depois foi despedido pelo seu “comportamento incorrecto”, sem direito a indemnização.
“Às vezes olho-me ao espelho e digo que se estivesse à minha frente odiar-me-ia a mim próprio”, desabafou Domenech, que em 2014 publicou um livro onde voltou a mostrar-se mordaz para algumas figuras do futebol mundial. José Mourinho não escapou às farpas. “O problema dos tradutores existe quando acabam por se convencer de que foram eles a escrever os textos”, disse o francês em referência ao cargo que o português desempenhou na equipa técnica de Bobby Robson, em início da carreira. A resposta nunca chegou.
Mourinho colecciona casos polémicos no seu currículo, mas não tem tempo para responder a todos. Uns amam-no, outros odeiam-no e alguns até se rendem a considerá-lo especial. Não é o caso dos homens do apito, que muito têm sofrido às suas mãos. Uma vez foi descrito como um “inimigo do futebol” pelo presidente da comissão dos árbitros da UEFA, Volker Roth.
A maior prova de fogo que teve foi em Madrid, onde chegou em Maio de 2010 com a missão de acabar com a hegemonia do Barcelona. Foram três anos de batalhas épicas com os catalães e uma rivalidade gigante com Pep Guardiola. A pressão da imprensa foi sufocante. Perdeu aos poucos o balneário e foi vencido pelos próprios jogadores.
Se no FC Porto, Inter de Milão e Chelsea sempre conjugou títulos com uma excelente relação com os seus pupilos, no Real tudo foi diferente para Mourinho. Muito por culpa de Iker Casillas, um ídolo do clube e do próprio país. Ao relegar o guarda-redes para o banco, dando as luvas ao suplente Diego López, o técnico português viu a equipa dividir-se. Até o central Pepe saiu ao ataque. “Iker é uma instituição do Real Madrid e de Espanha. É preciso ter um pouco mais de respeito”, afirmou a dado momento o internacional português.
A guerra fria com o Barcelona de Guardiola, que muitos classificaram como a melhor equipa da história, também impulsionou o fracasso. Às batalhas no relvado, que os merengues só venceram por três vezes, sucederam-se os contra-ataques verbais provenientes da Catalunha. “Mourinho é um brincalhão e é assim que o encaramos”, declarou o lateral Daniel Alves em 2011. Um ano depois, o central Gerard Piqué voltou à carga para acusar o técnico do Real Madrid de estar a “destroçar o futebol espanhol”, após o português ter agredido Tito Vilanova, adjunto de Guardiola, com um dedo no olho. E em 2012 o médio Xavi endureceu o discurso: “Mourinho não vai ficar na história do futebol”.
Os mind games do português nunca foram bem aceites em Espanha, muito menos pelo plantel catalão. O que não o inibiu de lançar as suas ofensivas. Em várias frentes. “Eu teria vergonha de ganhar uma Champions assim”, disse Mourinho sobre a equipa de Guardiola, depois de ter sido expulso e o Real ter perdido com o Barça (2-0), em Madrid, no primeiro duelo das meias-finais da Liga dos Campeões. Mas não ficou por aqui: além de acusar os árbitros de favorecerem o Barça ainda deixou, repetidas vezes, uma pergunta à UEFA que ficou célebre: “Porquê? Porquê? Porquê?”.
“Eu não sei se é o patrocínio da UNICEF ou se é porque eles são boas pessoas. Eu não entendo”, soltou Mourinho, aludindo à publicidade do Barça à organização das Nações Unidas de apoio às crianças.
No Verão de 2013, deixou Madrid para regressar ao Chelsea. Levou três títulos na bagagem e uma lição para a vida: “Se nem a minha casa controlo, porque quem manda é a minha mulher, como é que podia mandar num clube como o Real Madrid?”.
Em Londres as coisas nem por isso acalmaram. A rivalidade com Manuel Pellegrini ou Arsène Wenger continua acesa e os mais recentes resultados europeus voltaram a colocar achas numa fogueira que ameaça queimar o português.
Depois de empatar com o Paris Saint Germain na primeira mão dos oitavos-de-final da Champions (1-1), em França, Mourinho picou os adversários: “Com jogadores de tal qualidade, esperava mais futebol do PSG”. Problema: o Chelsea empatou novamente, desta vez em casa, mas a dois golos, e acabou eliminado da prova milionária da UEFA. E o PSG até ficou reduzido a dez jogadores desde os 31 minutos. O brasileiro David Luiz, após o apito final, não perdoou o antigo treinador: “Ele é que pediu para enfrentar o PSG. É sempre inteligente na escolha das palavras e nos mind games, mas desta vez pode-se dizer que não terá corrido como ele esperava”.
A imprensa inglesa também não desperdiçou a oportunidade de retribuir as habituais cortesias semanais na Premier League. Um futebol agressivo, uma atitude intimidatória aos árbitros ou uma arrogância desmedida são só alguns dos exemplos do ramalhete de críticas com que o brindaram. Aos poucos, Mourinho vai perdendo a aura de especial em terras de Sua Majestade.
O “ditador arrogante”, o “Hitler dos brasileiros” e o traidor
Se Mourinho ou Domenech foram moldando o seu lado negro à medida que iam construindo a carreira, já outros técnicos são mais precoces a atrair a polémica. Famoso pelas suas comemorações fascistas enquanto jogador da Lazio, só de ter assumido o comando técnico do Sunderland, em 2013, Paolo Di Canio levou à demissão do vice-presidente do clube inglês. Em causa estavam divergências políticas.
O italiano sempre foi um futebolista controverso e o cenário manteve-se com o fato de treinador. No Sunderland decidiu operar uma autêntica revolução na conduta da equipa: vetou o uso de telemóveis nas concentrações, o gelo nas bebidas e as refeições com maionese ou ketchup. Até cantar antes dos jogos, o que considerava ser desestabilizador, entrou para a lista de proibições. Durou seis meses no cargo, o tempo suficiente para os jogadores se revoltarem contra o “ditador arrogante”, como era chamado no balneário, segundo o The Sun.
Outro especialista em acumular atritos é Louis Van Gaal, que sempre se assumiu como “dominador”. O actual técnico do Manchester United parece não conseguir passar muito tempo sem gerar controvérsia. A sua principal vítima terá sido Rivaldo, em 1999, quando o avançado ganhou o prémio de melhor jogador do mundo, atribuído pela FIFA. Ao contrário do que se possa pensar, porém, a diferença entre os dois até foi mais táctica do que pessoal.
Rivaldo queria jogar como número 10, solto no ataque do Barcelona, mas Van Gaal insistia em apostar nele na ponta esquerda. A tensão cresceu e tudo serviu de pretexto para criticar o recém-eleito melhor do mundo. Desde castigá-lo com um jogo de suspensão a parar constantemente os treinos para o brasileiro meter a camisola para dentro dos calções. “Uma vez reclamou comigo por 20 segundos de atraso, até mostrou o relógio”, contou Rivaldo anos mais tarde.
Não é o único canarinho com razões de queixa. Ronaldo, o ‘fenómeno’, só não voltou à Catalunha após o Mundial-2002 porque o técnico holandês o rejeitou. A desculpa assentou no risco de uma nova lesão no joelho e a falta de compromisso do goleador. Pouco tempo depois juntou-se aos galácticos de Madrid. “Van Gaal é o Hitler dos jogadores brasileiros, é arrogante, orgulhoso e tem problemas”, atacou Giovanni na Folha de São Paulo, em 2010, acusando o seu antigo técnico em Nou Camp (1998/99) de não gostar de trabalhar com os brasileiros.
No Bayern, a opinião sobre Van Gaal também não é famosa. O italiano Luca Toni, que passou de indiscutível a suplente com o holandês em Munique (2009-2011), denunciou que o treinador tratava os jogadores “como objectos”. E ainda foi mais longe: “Uma vez, no balneário, Van Gaal baixou as calças em frente aos jogadores para mostrar que tinha coragem de substituir quem quisesse”. Franck Ribéry é outro que não guarda as melhores memórias: “Nunca me diverti em campo enquanto fui comandado por ele”.
Já na sua experiência de director técnico do Ajax, em 2004, Van Gaal tinha arranjado problemas. O hábito de pegar numa cadeira e sentar-se à beira do relvado a observar os treinos irritou o técnico Ronald Koeman. Ao fim de um ano foi dispensado.
A fronteira entre o amor e o ódio é muito ténue no futebol e Rafael Benítez, que nunca deixou grandes saudades aos seus jogadores, sabe bem disso. Era um ídolo no Liverpool – desde que em 2005 conquistou para os reds a Liga dos Campeões – quando acusou o Chelsea de ser um clube menor, por ter de oferecer bandeirinhas aos adeptos para criar ambiente no estádio. E foi ao ponto de declarar ao Daily Mail que nunca treinaria em Stamford Bridge.
Decorria o ano de 2007. Em 2012, aterrou em Londres para substituir Di Matteo, “orgulhoso” por assinar pelos blues. Uma traição que não ficou bem na fotografia na terra dos Beatles e que contaminou o espírito dos adeptos do Chelsea. Logo no primeiro jogo em Londres, foi brindado com cânticos ofensivos e inúmeros insultos.
Antes tinha estado no Inter de Milão, mas as coisas também não lhe correram bem. Lesões e maus resultados sentenciaram a sua demissão. O facto de, assim que chegou, ter mandado retirar todas as fotos de José Mourinho, que tinha levado o clube à conquista da Liga dos Campeões na época anterior, deixou os jogadores à beira de um ataque de nervos. “A história do Inter não pode ser apagada, nem discutida. E com esse gesto Benítez mostrou o seu caráter, que é o de uma pessoa fraca”, julgou Marco Materazzi, um dos pilares do plantel nerazzurri, em entrevista à revista France Football.
Um homem polémico a querer apagar da história outro que não lhe fica atrás só podia alimentar mais polémica.