O narrador diz que prefere um monólogo interior a histórias que avançam com pistas. Está a dizer alguma coisa sobre o livro?
Essa frase é como uma declaração de intenções. O que mais me interessa é a vida interior das personagens e não tanto o mundo das acções. Há no livro algo do género policial mas apenas como metáfora. O que acontece numa investigação policial é muito comparável ao que acontece ao protagonista que está a tentar descobrir a sua identidade a partir de objectos.
Uma investigação que é mais sobre a vida do que sobre a morte?
Há uma morte, a do amigo, e a primeira reacção é de raiva. Depois vem a curiosidade. Ele vivia a dizer que tinha medo, mas parecia mais um medo psiquiátrico do que um perigo real. Começa a tentar perceber, a olhar para as coisas que ele deixou em casa, para o computador. E quando volta a casa, onde não houve nenhum crime, continua a abrir gavetas como se tivesse sido ele a morrer e agora fosse outra pessoa a tentar descobrir quem ele foi. A pergunta é: o que poderia um estranho dizer de mim a partir de tudo isto que eu tenho?
A morte como uma possibilidade de olhar para a vida de outra maneira?
A presença da morte é o que dá sentido à vida. E as mortes próximas põem-nos em contacto com coisas que normalmente ignoramos. Somos o único ser do universo que sabe que vai morrer, mas esquecemo-nos. É o nosso mecanismo de defesa. O que acontece a esta personagem é essa reacção natural mas de forma mais exacerbada. A morte do amigo vem agitar uma necessidade de tentar perceber o que foi a própria vida. Até porque a nossa vida é sempre uma história que contamos. Dos milhões e milhões de minutos que vivemos, temos de seleccionar.
Então é mais sobre a morte ou é mais sobre o que resta da vida?
Tudo o que desaparece continua a existir. Acaba a guerra mas continua o ódio. Acaba uma relação mas ainda não terminou. A criança rodeada de pombas de uma fotografia de infância já não existe mas não deixamos de ser nós. Como diz o verso de Celan, "estávamos mortos mas podíamos respirar". Mas não é fácil falar de um livro em que a linguagem é mais importante do que a história.
A linguagem foi o cuidado principal?
A literatura tem de ter esse compromisso com a beleza. Muitas vezes o que se vende são histórias, só que a mesma história pode ser uma obra-prima ou uma telenovela. Depende muito do como. No momento em que toda a gente se esquecer do como e se focar no quê, deixamos de ter literatura e passamos a ter apenas livros.
No meio do tom intimista, porquê a presença de alguns marcos históricos da humanidade?
O protagonista acha que uma vida individual pode ser uma síntese da História colectiva. Cada pessoa pode olhar para a sua vida e identificar onde teve a sua guerra civil, onde teve o seu holocausto. Batalhas, épocas de fome, épocas de glória. Jacobo, o amigo, tem uma relação com o medo que vem primeiro da história da família. Aliás, há muitos medos no livro. Uns mais reais e outros mais indefinidos, que são na verdade os piores.
Pensei que no final não ia haver uma solução para o crime.
Talvez tivesse gostado mais se não houvesse. Mas também achei que sem isso podia passar uma ideia fantasiosa, entre a metafísica e o paranormal, de que teriam sido esses medos indefinidos a criar um perigo real. Além disso, o romance é muito pausado e no final precipita-se. Pode parecer um desequilíbrio na estrutura, que é uma coisa estranha para um contista como eu, mas a vida também é abrupta.
Porque acha que foi esta história a fugir ao formato de conto?
Cada história tem a sua extensão adequada. Podia ter contado isto num conto mas nunca desta maneira. Tinha muita vontade de fazer divagações, de poder falar de outras coisas que não têm muito a ver, e isso não se pode fazer num conto. Não foi tanto por ter visto que tinha uma história que podia ser mais longa. Foi uma necessidade minha de escrever com mais terreno.