Qual é o papel do actor?
A verdade.
A verdade dentro da mentira…
Mas a verdade da personagem, por muito que seja horrível. Tem de ser pela verdade e tem de ser por nós próprios, não pode ser por qualquer artifício porque as pessoas vão sentir isso. Parto sempre para os meus trabalhos e para as minhas personagens sem qualquer julgamento. Quando me propõem interpretar uma personagem, parto do princípio que aquilo é tudo verdade.
Quais foram as personagens mais difíceis de preparar?
Houve uma personagem que, para mim, foi das mais difíceis – e nem sequer foi em teatro, foi em televisão, num texto do Rui Vilhena, uma pessoa com quem gosto muito de trabalhar. O Bráulio, de Tempo de Viver, sofria de OCD [comportamento obsessivo-compulsivo]. Falei com médicos e com pessoas que têm este problema, vivi a experiência e senti-a. Essa ficou-me. Às vezes ficamos com coisas das personagens. A parte da organização ficou-me muito, a parte mais doentia é a da higiene. Vi pessoas com feridas nas mãos [de tanto as lavarem] e que não suportavam mexer em nada sem terem de lavar as mãos quatro e cinco vezes de seguida.
Foi a hospitais?
Sim, e convivi com pessoas que sofrem desse problema. Esse trabalho de composição – opto muito pelo método de Stanislavsky – passa pela observação. E isso facilita muito. Não consigo fazer nada sem pôr os meus sentimentos verdadeiros. Acho que, às vezes, sou mais verdadeiro a representar do que na vida pessoal. É muito mais fácil, não há as barreiras sociais, as barreiras familiares, os estigmas.
Disse que o Bráulio foi uma das personagens mais difíceis que teve. Houve outras que o tenham marcado particularmente?
Estreei-me no Teatro da Cornucópia com Os Diálogos Sobre a Pintura na Cidade u de Roma, de Francisco de Hollanda, um trabalho muito mais intelectual do que físico. Houve uma outra personagem, num espectáculo com a Catarina Furtado, Loucos por Amor. Era um cowboy e foi um trabalho fisicamente violento, pois andava de chapéu, botas e tive várias horas de treino com uma corda. Passava duas horas emocionalmente de rastos, aos gritos. Depois fazia um registo de voz rouca, que me deu cabo da voz durante muitos anos. E a técnica não me serviu de nada, estava-me nas tintas para a técnica, queria era fazer o espectáculo. Houve ainda uma outra personagem que gostei muito de fazer, dos primeiros trabalhos que fiz em televisão, na novela Queridas Feras. Fazia de gémeos e foi pedido ao meu irmão para ajudar a produção, nas cenas em que entravam os dois. Ele foi uma grande ajuda. Foi um trabalho que me marcou muito, foi desgastante.
Como foi a mudança do ‘anonimato’ do teatro para a popularidade da televisão?
Comecei a fazer teatro na altura em que na televisão havia novelas da NBP de dois em dois anos, produzidas pelo Nicolau Breyner. Não tinham a dimensão nem a mediatização que têm hoje. No teatro estreei-me muito bem, na Cornucópia, como já disse, com o Luís Miguel Cintra, com quem aprendi muito e tive logo óptimas críticas.
Sentiu-se desejado, fisicamente, no mundo do teatro?
Sim. Aliás, nessa peça tive coisas muito boas, mas também tive vários problemas. O Luís Miguel Cintra teve uma grande paixão por mim, digamos assim. Na altura, ele estava com o companheiro dele e foi um problema muito sério, ao ponto de me vir embora no segundo espectáculo. Já não aguentava mais, eles pediram para eu ficar, mas não quis.
Mas era uma coisa obsessiva?
Não era obsessivo, o Luís Miguel é uma pessoa muito educada e respeitadora. E, na altura, não era correspondido da minha parte.
Como heterossexual na altura, o que achou do assédio?
Natural. A minha sexualidade, até muito tarde, é uma coisa bastante aberta. Ainda o é hoje. Não tenho como certo que a minha relação de hoje será eterna. Não considero a homossexualidade uma opção, acho que nasce com as pessoas. As pessoas demoram mais ou menos tempo a descobrir isso. Mas não a considero, como os amores, para a vida.
Qual foi a sua reacção quando ele o quis conquistar?
Foi um bocadinho intimidatório. Ao mesmo tempo, achava graça. Tenho uma declaração de amor escrita pelo Luís Miguel Cintra. Uma coisa de quatro ou cinco páginas – ele estava no Festival de Cannes porque ia receber um prémio com o Manoel de Oliveira. É uma das declarações mais bonitas que me fizeram e guardo-a com muito carinho. Tenho outra do Jorge Silva Melo, não nestes termos porque são coisas completamente diferentes. Foi alguém que me marcou muito com uma declaração de amor profissional, digamos assim. Todas as pessoas que foram importantes para mim, a nível profissional, foram sempre pessoas em que a nossa relação foi mais do que profissional. Ou seja, passou por qualquer tipo de amor. Seja platónico ou físico. O João Perry também foi uma pessoa importante para mim, das mais importantes ao nível da minha formação, com quem tenho um amor muito grande. Mesmo as mulheres que marcaram o meu percurso profissional, também passaram pelo lado físico.
Quando decide que lhe apetece mais uma coisa do que outra?
Sei que agora estou bem.
Não teve receio?
Claro que sim. Receio social, familiar, mas também já não tenho grande coisa a explicar. Faltava-me alguma coisa, faltava-me, se calhar, o que não conhecia. De repente, achei que era aquilo que eu queria.
Tinha namorada na altura?
Sim. Outra das pessoas mais importantes para mim foi a Ana Brandão. Nunca a traí, resolvemos o nosso amor e a partir daí tive outras relações. Continuamos amigos, estivemos juntos seis anos. Mas isto não é uma coisa estanque, de hoje para amanhã as coisas podem mudar completamente. Aquilo que tenho com um homem não tenho com uma mulher. Fisiologicamente é diferente, fisionomicamente são diferentes e, às vezes, parece que tenho necessidade das outras coisas, daquilo que não tenho. Sou muito puto nestas coisas.
Como reagiram os seus pais quando souberam?
Eu não disse: ‘Pai, eu sou gay’ ou ‘Pai, este é o meu namorado’. Tinha uma relação já há algum tempo e, naturalmente, os meus pais foram estando com essa pessoa e perceberam. Não houve necessidade disso, aceitaram naturalmente. E fiquei muito feliz por não me causarem essa pressão de ter de dar uma justificação.
Na altura, teve medo?
Tive algum receio do que as pessoas poderiam comentar. Mas tive sempre algum cuidado nesse aspecto, não só a esse nível, há outros aspectos da minha vida que não comento. A sexualidade é uma coisa que fascina as pessoas, mas há outras questões… Tenho uma relação há 12 anos. Os cuidados e as preocupações que tinha no princípio da relação não são os mesmos que tenho hoje. Estou confortável, sinto-me completamente à vontade. Não tenho que assumir publicamente nada.
rita.porto@sol.pt e vitor.rainho@sol.pt
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